quarta-feira, abril 08, 2009

«(...) Robert Reid Kalley» - Maria Zina Gonçalves de Abreu

“‘Pilgrims’ Madeirenses na Expansão da Fronteira Norte-Americana: Proselitismo de Robert Reid Kalley, 1838-c.1850”, in Actas do I Congresso Internacional de Estudos Anglo-Portugueses (Lisboa: Centro de Estudos Anglo-Portugueses da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2001), pp. 613-28.

Ao longo dos séculos a Ilha da Madeira tem sido destino de eleição para estrangeiros, sobretudo dos britânicos, que, aliciados pela amenidade do seu clima e pelas suas belezas naturais, a têm visitado ou ali permanecido em estadas mais ou menos prolongadas: uns à procura do lazer, outros da cura de doenças, outros para ali se estabelecerem e residirem.
A comunidade britânica residente na Ilha começou a adquirir um peso significativo a partir dos finais do século XVI, época em que as Igrejas estabelecidas dos britânicos já eram protestantes. Tendo os Protestantes,[1] tal como os Católicos uma visão ecuménica da Igreja e da Fé, seria de esperar que surgissem tentativas de evangelização, sobretudo por parte daqueles que optaram por ali se estabelecer e residir. No entanto, até à implantação da Monarquia constitucional em Portugal, salvo algumas tentativas fracassadas, não consta que os membros da comunidade britânica ou de qualquer outra nacionalidade protestante tivessem conseguido introduzir a sua Fé no seio das populações madeirenses. A prática do seu culto era realizada em igrejas privadas, frequentadas exclusivamente pelos seus membros.[2]
Em 1838 um abastado médico escocês, o Dr. Robert Reid Kalley,[3] decidiu mudar-se para a Madeira, levado pela crença de que o clima ameno da Ilha permitiria a recuperação da saúde da esposa. Oriundo de uma nação de arraigada cultura e Fé protestantes, chocou-o o estado de ignorância do povo madeirense, que não lhes permitia o acesso directo à Palavra de Deus, pela leitura pessoal da Bíblia. Essa consciencialização levou-o a fundar ‘escolas de primeiras letras’ em diversas partes da Ilha, onde a alfabetização baseava-se no estudo da Cartilha e na versão vernácula da Bíblia.[4] As iniciativas de Kalley não foram no entanto vistas com bons olhos, nem pelas autoridades eclesiásticas nem civis, que o acusaram de estar a querer propagar a Fé protestante entre os madeirenses. Assim, embora nos primeiros tempos tivesse conseguido obter o respeito e a reverência das autoridades e da comunidade,[5] não tardou que se desencadeasse uma forte acção de perseguição a Kalley e àqueles a quem ele beneficiava.
Tendo residido na Madeira durante cerca de oito anos, a dimensão do impacto das actividades de Robert Kalley e da sua influência sobre os madeirenses deve ser avaliada à luz de, pelo menos, algumas das importantes diferenças de carácter ético, teológico e eclesiológico entre Catolicismo e Protestantismo, sobretudo o Protestantismo Reformado helvético, que, em Inglaterra, inspirou a dissidência à Igreja estabelecida pela Rainha Isabel I[6] — que pôs fim à uniformidade religiosa por que a soberana tanto pugnou —, mas que foi instituído na Igreja da Escócia,[7] de cujo legado religioso Robert Kalley é herdeiro.
Enquanto fenómeno religioso, a Fé reformada, também conhecida por Calvinismo ou Presbiterianismo, caracterizou-se por uma forte rigidez moral, decorrente da ênfase dada ao dogma da predestinação. Embora esse dogma fizesse parte da tradição cristã,[8] adquiriu o tom de decreto divino inexpugnável com os reformadores helvéticos, sobretudo com João Calvino. Na sua teologia, Calvino afirma que Deus destituiu a humanidade do livre-arbítrio, dividindo-a em eleitos e réprobos, filhos da luz e das trevas. A eleição ou danação eternas dependia dos desígnios inescrutáveis de Deus. Cristo não morrera na cruz para todos, mas só para os eleitos. Todos os réprobos estavam irremediavelmente condenados à danação eterna.
O constrangimento decorrente desse sentir escatológico fazia com que, na ânsia de se certificarem da sua eleição, os Protestantes se tornassem fundamentalistas no estudo e tratamento da Bíblia, já que, diferentemente da prática católica, a salvação para o homem ou a mulher protestante não era assegurada por práticas religiosas como a confissão, a penitência, a comunhão e boas obras — considerados meros veículos de transmissão de graça salvadora —, mas pela Fé, adquirida pelo intenso exercício da experiência pessoal de Deus, intermediada pela leitura e estudo das Escrituras Sagradas e de outros textos devocionais, bem como pela pregação e pela prática do bem[9]— doutrinas que tornaram a Salvação a responsabilidade de cada indivíduo.
O exercício intensivo da Fé entre os Protestantes britânicos não se limitava ao serviço religioso na igreja paroquial, sendo extensível a outras formas de culto público e, sobretudo, à prática religiosa doméstica. Em casa, individualmente e em grupos de familiares, amigos e vizinhos, os crentes estudavam a Bíblia, aprendiam o catecismo calvinista, liam sermões e escritos devocionais, compunham as suas próprias preces espontâneas, cantavam salmos, meditavam e registavam nos seus diários a sua experiência religiosa e o seu progresso espiritual.[10]
Os pastores protestantes promoveram exaustivamente o alargamento do conhecimento da Bíblia a todos os estratos sociais. A responsabilização de cada indivíduo pela sua própria salvação, através da prática adequada do culto a Deus em conformidade com a Sua Palavra, tornou a leitura da Bíblia um acto individual, para o que era obviamente importante saber ler. A ênfase logocêntrica da nova Fé tornou assim desejável a alfabetização de todos, homens e mulheres. Foi nesse sentido que os Protestantes desenvolveram teorias e projectos de educação universalistas[11] e se empenharam no exercício intensivo da instrução religiosa do povo, durante todo o período da Reforma da Igreja, prática que, na Grã-Bretanha, teve como resultado o conhecimento difuso da Bíblia entre os protestantes leigos.[12]
Para os Calvinistas,[13] a Bíblia era a única autoridade que reconheciam em matéria de Fé e fonte única de inspiração em todos os domínios, inclusive o da política. A autoridade suprema da Palavra de Deus dominava a nação inteira, autoridade difícil de refutar. Tudo o que não estivesse expressamente nela lavrado deveria ser rejeitado e resistido. Na sua pregação, os pastores protestantes davam ênfase especial ao ensino de doutrinas como ‘direito à liberdade de consciência religiosa’, ‘igualdade na Fé’, ‘SOBERANIA ABSOLUTA de Deus’ e ‘primazia da obediência aos seus mandamentos’ — todas doutrinas potencialmente subversivas.[14]
Foi essa crença que inspirou o intrépido reformador escocês John Knox[15] a argumentar que os governantes (monarcas, príncipes ou magistrados) eram meros executores de uma LEI que não tinham poder para fazer ou desfazer, argumento que usou na sua formulação da doutrina do ‘dever de resistência a magistrados idólatras e tiranos’,[16] doutrina que conferiu ao presbiterianismo escocês e ao puritanismo britânico um poder político excepcional, ao ser fonte de inspiração da ideologia liberal que está na base das muitas confrontações e rebeliões civis que se verificaram na Escócia e em Inglaterra durante o século XVII, que provocaram profundas mudanças na sociedade britânica — nas instituições, na política e na forma de governo. Foram essas mudanças que permitiram que a Grã-Bretanha se transformasse na nação europeia onde primeiro floresceu o liberalismo social e político, consagrado na Bill of Rights de 1688 — declaração de direitos que, jurada pelos novos soberanos, Guilherme III e Maria II, institucionalizou a limitação do poder real pelos direitos dos cidadãos e pelas prerrogativas do Parlamento, instituindo assim uma forma de Governo constitucional que, um século mais tarde, serviu de modelo à Constituição dos Estados Unidos da América e às das nações da Europa continental que adoptaram formas de Governo constitucionais, nas quais se inclui Portugal.[17]
Foi precisamente numa época em que o liberalismo político se encontrava em fase de implantação em Portugal, nas primeiras décadas do século XIX, com a vitória dos Liberais na revolta militar (1828-34) contra o regime absolutista do Rei D. Miguel, que, na Madeira, onde imperou o domínio miguelista,[18] vamos encontrar Robert Kalley, a quem o madeirense Manoel de Sant’Anna e Vasconcellos[19] chamou de fanático escocês que “concebe a temeraria e criminosa empreza, de vir rompêr n’esta Provincia portugueza a Unidade Catholica de que até então gozava todo o Reino.”[20] Não é pois de admirar que, na Madeira, as actividades e o pensamento de Robert Kalley — que revelam ter sido ele um notável herdeiro do legado cultural britânico acima sintetizado — tenham assumido um carácter ainda mais subversivo e, por conseguinte, ameaçador da ordem estabelecida.

Acção de Robert Reid Kalley na Madeira (1838-1846)

Tendo chegado ao Funchal em Outubro de 1838, Robert Kalley em breve se tornou popular como médico e, sobretudo, pelo seu zelo religioso, que expressou através de eloquente pregação e da prática do bem, sobretudo pelo atendimento gratuito aos doentes pobres.[21] Em 1841 já tinha fundado um pequeno hospital, onde os tratava e alimentava também gratuitamente.[22] A notável prática de caridade, a fundação de escolas para pobres, aliada à sua competência profissional, criaram uma halo de simpatia que fez de Kalley uma figura muito popular. Para madeirenses como Manoel de Sant’Anna e Vasconcellos, no entanto, os actos de filantropia de Kalley não passavam de ardilosos meios de seducção de que lança mão [...] um fanatico propagandista religioso, para converter os incautos aos principios de sua errada seita.”[23] Parece com efeito verdade que muitos madeirenses se converteram à Fé protestante que Kalley professava. O Sumário Eclesiástico de 1843 refere haver já uma “grande multidão de pessoas [que se tinha] tornado sectaria acérrima das suas praticas doutrinaes.”[24]
De entre os ensinamentos do credo Protestante que mais contribuíram para o progresso das sociedades que abraçaram essa nova Fé, sobressai, como já foi referido, a ênfase na leitura pessoal da Bíblia, como meio privilegiado de acesso a Deus. É portanto compreensível que Kalley, confrontado com o “estado de grande ignorancia” do povo madeirense se preocupasse com a sua alfabetização, que lhes permitiria o seu acesso directo à leitura da Bíblia.[25] Foi nesse sentido que fundou várias ‘escolas de primeiras letras’ em diversas localidades da Ilha,[26] e adquiriu um elevado número de exemplares da Bíblia, versão em português, que mandou vir de Inglaterra e pôs em circulação na Madeira.[27]
A oposição às iniciativas pedagógicas de Kalley cresceu em espiral, acabando o Governador Civil por mandar “fechar todas as escólas protestantes”, dando ordens para que fossem intimados “quaisquer Professores ou Professoras[28] das Escolas de Primeiras Letras [...] pagas pelo Snr. Dr. Roberto R. Kalley [...], para que não [continuassem] a ensinar pessoa alguma”, sob pena de serem autuados.[29]

Perseguição e Tulmutos (1841-1846)

Os rumores de que os actos de filantropia de Kalley tinham por objectivo camuflar a propagação da sua Fé entre a população madeirense, bem como das leituras que fazia da Bíblia aos doentes do seu hospital, não tardaram a chegar aos ouvidos do Governo de sua Majestade[30] que, imediatamente, instruiu o Bispo do Funchal[31] a fazer “cessar as palestras religiosas” de Kalley.[32] A população no entanto manifestou-lhe o seu apoio, expresso em “muitas Representações dirigidas ao Governo [...] assignadas por um grande número de respeitáveis cidadãos”,[33] em que as qualidades do médico eram louvadas, e desmentidas as acusações de que estava a tentar converter os seus doentes à Fé protestante.
No entanto o Prelado não se convenceu da inocência de Kalley, nomeando uma Comissão[34] para examinar os exemplares da Bíblia de edição inglesa que o médico pusera em circulação na Madeira.[35] Após dois anos de trabalho de revisão, a Comissão Revisora foi do parecer que, embora as Bíblias usadas por Kalley tivessem estampado “no rosto [...] o nome do Padre Antonio Pereirra de Figueiredo,[36] como seu traductor; não eram todavia copias fieis de sua traducção, a qual sendo approvada pela Igreja Lusitana, era a única, cuja leitura, podia e devia ser consentida ao Publico Portuguez ; por quanto era rarissimo o verso [...] que não diferisse [...] da ditta traducção.”[37] Em consequência deste parecer, as Bíblias usadas por Kalley e pelos seus seguidores foram anatemizadas e ordenada a sua confiscação.[38]
As hostilidades contra Kalley continuaram entretanto a agravar-se, sobretudo a partir de Janeiro de 1843, quando uma “pessoa ou pessoas desconhecidas affixarão um papel na porta [de sua casa], ameaçando matal-o [sic], se continuasse a fallar sobre materias religiosas”, tendo a sua casa sido atacada.[39] Kalley pediu protecção ao Cônsul britânico[40] e, contando igualmente com o apoio da influente comunidade britânica residente na Ilha, sobretudo dos comerciantes,[41] deu continuidade às actividades filantrópicas e pedagógicas em que se empenhara.[42]
Foi justamente a percepção de que o médico não pretendia “suspender a sua carreira” de pregador,[43] que desencadeou um processo de hostilização e perseguição a Kalley e aos seus prosélitos, iniciado em Março de 1843, com as ordens do Governador Civil para que “não [continuasse] a admittir em sua casa reuniões de subditos Portugueses, nem a dirigir-lhes práticas, palestras ou discursos sobre matérias religiosas em sua ditta casa, ou fóra d’ella”,[44] sob pena de ser processado. A partir de então, passou a ser frequente a presença de destacamentos policiais à porta da casa do médico, encarregados de impedir a entrada de madeirenses, mesmo que se tratasse de doentes.[45]
Porém, ao invés de passivamente obedecer às ordens do Governador, Kalley quis saber de que fonte derivava ele a autoridade para o proibir de receber em sua casa quem quisesse, argumentando que, tendo examinado a Constituição portuguesa em vigor,[46] bem como o Tratado[47] celebrado entre o Governo Português e o Britânico, não encontrara em nenhum desses documentos base legal para a proibição que fizera. Num protesto formal contra os ataques à sua liberdade, Robert Kalley assegura ainda o seu pleno “direito de expôr francamente, em minha propria casa, os meus pensamentos sobre todo e qualquer assunto, seja ele religioso ou de outra qualquer qualidade, estejão ou não presentes, pessoas naturais desta Ilha.”[48]

Defesa de Robert Reid Kalley

Kalley contesta a legitimidade das ordens emanadas do Governo de Sua Majestade, expressas no Edital mandado publicar pelo Governador Civil,[49] que argumenta serem uma violação dos seus direitos. Diz o Edital que, tendo o “Dr. Robert R. Kalley [...] propagado Doutrinas offensivas e contradictorias aos Dogmas essenciaes da Religião Catholica Apostolica Romana”, manda a Rainha “as mais positivas e terminantes ordens para fazer prohibir e embaraçar as praticas, palestras e discursos d’aquelle estrangeiro, [...] em que elle propaga doutrinas condemnadas pela Santa Igreja.” No cumprimento das ordens da soberana, o Governador Civil invoca o artigo 6º da Lei Fundamental da Monarquia, que define a Religião Católica Apostólica Romana como ‘Religião do Estado’, que, como tal, deve ser “desagravada pela Authoridade, de todas as aggressões, e offensas.” Argumenta também que, não obstante o§ 4º do artigo 146º [sic] da Constituição portuguesa dizer “[q]ue ninguem póde ser perseguido por motivos de Religião, todavia ali mesmo se impôz a todos de respeitar a do Estado, e só assim lhes é garantida a liberdade de consciência.”
Uma leitura comparada da interpretação feita à letra da jovem Constituição portuguesa pelas partes em conflito — autoridades portuguesas versus súbdito britânico — revela-nos diferenças significativas entre o estado do pensamento liberal português e o do britânico, em termos do entendimento dos conceitos de liberdade e de direitos civis nela expressos. Enquanto as autoridades portuguesas fazem uma leitura da Constituição limitadora da tolerância religiosa e da liberdade civil, Robert Kalley sublinha os elementos nela patentes que consignam a liberdade de culto e direitos civis. Kalley invoca o mesmo artigo 6º da Constituição para mostrar que, embora ali seja consignado que a ‘Religião do Estado’ é a Religião Católica, é nesse mesmo artigo igualmente consignado aos estrangeiros o direito de praticarem “o seu culto domestico e particular.” Sublinha também o facto de que não só o § 4º do artigo 145º [sic] declara que “ninguém póde ser perseguido por motivos de Religião”, como o § 6º desse mesmo artigo expressa de forma inequívoca ser “a casa do cidadão um asylo inviolavel.”
Kalley invoca ainda a tradição constitucional britânica, cujas raízes remontam à Magna Carta (1215), protestando veementemente por ter sido declarado “criminoso e perturbador da paz publica, não somente sem prova, mas o que é mais grave, sem processo, e sem ser ouvido em sua defesa”, assegurando ser “um dos principios da jurisprudencia ingleza [...], que todo o homem deve ser considerado innocente, em quanto se lhe não provar o crime.” Kalley protesta assim contra o que considera abuso de poder, argumentando não poder acreditar que a Constituição portuguesa confira “ao Governo um poder tão arbitrário [que] se extenda até o ponto a que tem sido levado”, abuso de poder que inclui “a arbitraria prohibição feita aos doentes que a elle recorrem”, que vê como “interferencia illegal nos seus direitos”, como médico oficialmente autorizado.[50]

* * *

Da breve análise que acabámos de fazer, podemos assim inferir que, não obstante estarmos em pleno período de consolidação do liberalismo político em Portugal e a Constituição de 1822 ser considerada como a expressão da mundividência liberal,[51] a intolerância religiosa e os incidentes de repressão contra Kalley e os seus seguidores revelam-nos que a agonia do tradicionalismo absolutista, entre nós, se apresentou extremamente longa e que as ousadias mentais no que se refere à inviolabilidade da omnipotência da Coroa e da Igreja, sobretudo no que toca aos seus aspectos religiosos, eram pagas a um elevado preço.
O diferente entendimento dos conceitos de liberdade e de direitos civis expresso pelas partes em conflito reflecte os diferentes estágios culturais e de progresso social em que a sociedade britânica e portuguesa se encontravam na primeira metade do século XIX, diferenças essas que têm muito a ver com o facto de, na Grã-Bretanha, a Reforma da Igreja ter sido fonte de inspiração e esteio do liberalismo social, político e religioso.
Diferentemente de Portugal, na Grã-Bretanha, a liberdade religiosa — quase universal[52] — fora assegurada já no século XVII por lei parlamentar (Toleration Act), de 1689, consequência da já referida ideologia liberal que emergiu na sociedade britânica seiscentista e que John Locke sistematizou na obra Second Treatise on Civil Government (1690),[53] obra que se tornou fonte de referência do pensamento liberal no mundo ocidental. Locke via a tolerância religiosa como a fundação da liberdade, e a liberdade de consciência como ‘um direito natural de todo o indivíduo’.[54]
Foi John Locke quem consolidou as doutrinas protestantes que sancionavam a resistência activa contra um magistrado que oprime a consciência religiosa do povo, inicialmente propugnadas pelos reformadores quinhentistas britânicos, sobretudo por John Ponet,[55] John Knox[56] e Christopher Goodman,[57] e que com os radicais e sectários do movimento revolucionário britânico seiscentista evoluíram para a asserção dos direitos fundamentais do indivíduo. Foram essas doutrinas que, transformadas em ideologia política liberal, instruíram e justificaram a deposição e execução de Carlos I, em 1649, e o subsequente estabelecimento de um Governo republicano. Esses revolucionários tornaram a liberdade de culto indissociável da liberdade e direitos civis, ideais subjacentes na controvérsia entre absolutismo e constitucionalismo.[58]
Foi a lei de tolerância religiosa de 1689, aliada à secularização do pensamento e da so­ciedade a partir do final do século dezassete, sob a influência do pensamento cartesiano e iluminista, que permitiram a transição da fundamentação teórica dos direitos naturais do indivíduo, dominada por imperativos unicamente religiosos, para a fundamentação teórica dos direitos naturais do indivíduo, dominada por imperativos racionais, direitos que justificavam a resistência activa contra toda e qualquer forma de opressão ou de violação da consciência. Foram estas mudanças que permitiram à sociedade britânica evoluir de uma sociedade fundada em conceitos de hierarquia e de uniformidade religiosa para uma sociedade fundada em conceitos de multiplicidade, disparidade e tolerância, evolução que se traduziu na transição de uma sociedade governada por um regime político e religioso autocrático, legitimado por constituições sancionadas por direito divino, para uma vigorosa sociedade materialista, orientada por grupos competitivos dentro de uma estrutura pautada por diferenças políticas, religiosas e sociais. Em suma, a sociedade inglesa tornou-se mais secular e mais tolerante.[59]
Era pelo menos assim que a viam importantes visitantes estrangeiros, como os iluministas franceses Montesquieu[60] e Voltaire.[61] Nas suas Cartas sobre Inglaterra,[62] Voltaire expressa grande admiração pela liberdade da classe média inglesa, manifesta no seu partido Whig, no Parlamento e na deferência pelos intelectuais, afirmando que a transformação da sociedade britânica numa sociedade liberal teve como factor principal a liberdade de culto assegurada pela lei de tolerância religiosa.[63]

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Como consequência da sua desobediência civil,[64] Kalley, os seus colaboradores e outras pessoas que participavam nas reuniões em sua casa foram por diversas vezes autuados e sumariamente processados pela Câmara Eclesiástica, que declarou serem as suas práticas religiosas “destinadas a promover o Scisma, a heresia, e a apostasia da nossa Santa Religião.”[65] Desses processos resultaram a excomunhão dos seus dois principais colaboradores, Nicolau Tolentino Vieira e Francisco Pires Soares.[66] Robert Kalley acabou por ser preso,[67] sendo todavia libertado alguns meses mais tarde, na sequência da sua apelação para o Tribunal da Relação, que não encontrou “bem marcada nas nossas leis” a legitimidade da sua condenação.[68]
A 23 de Novembro de 1844, as heresias de Kalley e os tumultos ocorridos na Madeira são apresentados à Câmara dos Deputados pelo Bispo d’Elvas, que se encarrega de alertar a Câmara para os perigos da propagação da heresia protestante.[69] Este alerta deu azo à apresentação de um projecto-de-lei para reprimir os “delictos contra a Religião do Estado”, na sessão legislativa de 3 de Dezembro do mesmo ano.[70]
Foi por essa altura que o Governador Civil mandou encerrar todas as escolas fundadas por Kalley.[71] No entanto, essa medida não foi suficiente para pôr fim ao novo culto, que passou a ser praticado nas casas daqueles que se tinham convertido à nova Fé.[72]
Nos jornais da época, são inúmeras as notícias da perseguição cerrada de que Kalley e os seus seguidores foram vítimas, muitos dos quais enfrentaram os tribunais e a prisão.[73] As sentenças chegaram a incluir a pena de morte. Foi esse o caso de Maria Joaquina, condenada à morte por “crimes de blasfémia e heresia”,[74] no dia 2 de Maio de 1844. As arbitrariedades contra os seguidores de Kalley não se limitaram às perseguições em vida. Depois de mortos, foi-lhes ainda negado o sepultamento num cemitério, sendo os seus corpos enterrados na estrada pública.[75]
Mas não foram só as autoridades civis e eclesiásticas que perseguiram os ‘kallistas’.[76] A própria população católica, naturalmente movida pela veemência da propaganda anti-protestante que a advertia contra os perigos das práticas heréticas de Kalley e dos seus prosélitos,[77] também colaborou nessa perseguição, primeiramente em manifestações de apoio às medidas repressivas tomadas pelas autoridades locais e nacionais e, à medida que a propaganda anti-protestante foi crescendo, por iniciativa própria. O ponto mais alto da perseguição a Kalley e aos seus seguidores registou-se no dia 9 de Agosto de 1846, quando uma enorme multidão de populares furiosos cercou e invadiu a casa do médico, provocando avultados prejuízos. Kalley conseguiu escapar, refugiando-se na casa do Cônsul britânico, que o aconselhou a sair imediatamente da Ilha. Disfarçado de mulher e conduzido numa rede, Kalley embarcou num navio inglês que se encontrava no Funchal, cujo destino era a América.[78]
Por intermédio do Governo britânico, Robert Kalley exigiu do Governo português o pagamento de uma indemnização no valor de 7 084 631 réis[79] pelos prejuízos decorrentes da pilhagem de sua casa, pelo povo amotinado. O inusitado pedido de indemnização tornou-se num caso diplomático entre Portugal e Inglaterra, amplamente divulgado pela imprensa local e da metrópole, sendo objecto de discussão em todo o território nacional e no estrangeiro. Embora levasse alguns anos, o pagamento da indemnização acabou por ser satisfeito, em três prestações, obviamente por pressão do Governo britânico.[80]

‘Pilgrims’ madeirenses pioneiros na expansão da fronteira Norte-Americana

Uma vez chegado aos Estados Unidos, Kalley estabeleceu-se em Illinois[81] e, com o dinheiro da indemnização que recebeu do Governo português, ajudou muitos dos madeirenses a quem convertera a imigrarem para a América. Alguns juntaram-se a ele, fixando-se em Jacksoville e Springfield (Illinois), dois povoamentos nas proximidades da zona onde António Monteiro, um caçador de peles português natural do Porto, já se havia fixado.[82] Foi em Jacksoville que Abraão Lincoln, futuro presidente da América, foi viver depois de casado. A cozinheira da família Lincoln era a madeirense Frances Afonsa.[83] Outros dos seguidores de Kalley, temendo a perseguição religiosa ou por simples espírito de aventura, não esperaram pela sua chamada e foram engrossar as colónias portuguesas em Demerara, na Trindade e noutras regiões da América.[84] Alguns dos perseguidos que imigraram para a Ilha de Trindade foram mais tarde juntar-se aos parentes ou amigos que se estabeleceram em Illinois.[85]
Esta onda de imigração para a América, faz desses madeirenses ‘pioneiros’ na expansão da fronteira Norte-Americana. Madeirenses e açorianos contribuíram fortemente para o povoamento de algumas localidades do Oeste norte-americano. No levantamento que Josiah Kelly[86] fez do número de habitantes do território de Nevada em 1863, havia quatro madeirenses, entre os quais se encontrava um advogado, um forrador de paredes e um jardineiro. No censo do condado de Story de 1875, havia cento e doze naturais de Portugal ou das Western Islandes, talvez referindo-se às ilhas dos Açores e da Madeira, a maioria dos quais trabalhava em minas.[87] Alguns dos colonos madeirenses acabaram por fazer fortuna, nomeadamente com o comércio do vinho da Madeira. A cobrança do vinho Madeira vendido na América, em muitos casos a crédito, era problemática e, por isso, alguns comerciantes madeirenses constituíram procurados por forma a poderem cobrar o dinheiro proveniente das vendas com uma maior prontidão.
Da análise das actividades de Robert Reid Kalley na Madeira e dos incidentes e efeitos que as mesmas provocaram, acreditamos ser legítimo inferir que as ‘escolas’ por ele fundadas na Ilha terão sido não só ‘escolas de primeiras letras’, mas sobretudo importantes escolas de ‘consciencialização religiosa, política e social’, que terão feito com que os protestantes madeirenses perseguidos, tal como acontecera como os Pilgrims britânicos, abandonassem a sua pátria — uma ‘babilónia’ anatemizada por Deus —, e partissem para o Novo Mundo, para se juntarem à comunidade de eleitos — o novo Povo de Deus —, e ali viverem em liberdade.

Nota ao Editor(a)

Esta bibliografia já se encontra referida na íntegra nas Notas de Rodapé,
podendo por isso ser dispensada.

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WOOTON, David (ed., 1986), Divine Right and Democracy: An Anthology of Political Writings in Stuart Eng­land, Harmondsworth, Middlesex, Penguin Books, 1986.



Comunicação apresentada no:

1º Congresso Internacional de Estudos Anglo-Portuguese
Data: 6-8 de Maio de 2001
Local: Lisboa
Organização: Centro de Estudos Anglo-Portugueses
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

Autora:

Maria Zina Gonçalves de Abreu
Deptº de Estudos Anglísticos e Germanísticos
UNIVERSIDADE DA MADEIRA
Campus da Penteada, Piso 1
9000-390 FUNCHAL

Tel: 291-70 53 60 \ 291-76 67 42
Telemóvel: 91 96 47 027
Email: cddeag@uma.pt ou zina@uma.pt

[1] Para efeitos deste trabalho, o termo ‘Protestante’ aplica-se indistintamente aos membros das diferentes denominações religiosas que surgiram com a Reforma da Igreja de Inglaterra e da Escócia, no século XVI, e a sua evolução no século XVII, sobretudo as que adoptaram o modelo calvinista ou variante do mesmo.
[2] Silva, Fernando Augusto e Carlos Azevedo Meneses (21946, fac-símile, 1984), Elucidário Madeirense, vol. II, Funchal, Direcção Regional de Assuntos Culturais, vol. II, p. 157.
[3] Robert Reid Kalley, filho de Robert Kalley e de Joana R. Kalley, nasceu em Mont Floridan, próximo de Glasgow, em 1809, e morreu na cidade de Edimburgo em 1888. (Silva e Meneses, Op. Cit., p. 207).
[4] Kalley, Robert Reid (1843) Uma Exposição de Factos, Funchal, Typographia do Defensor. [Biblioteca Nacional, cota S.C. 10652 // 7 P]. Cotejada com a 2ª edição, intitulada Exposição de Factos Relativos à Aggressão contra os Protestantes na Ilha da Madeira, impressa pela Typographia Luso-britannica de W.T.Wood, Lisboa, 1875. [BN, cota S.C. 11449 // 13 P].
[5] Kalley, R. R., Exposição de Factos, Op. Cit.; ver jornal O Defensor, nº 74, de 29 de Maio de 1841.
[6] Cabe aqui esclarecer que a Igreja de Inglaterra, conforme estabelecida pela Rainha Isabel I, actualmente também conhecida como Comunhão Anglicana, adoptou uma forma religiosa híbrida de Luteranismo e Calvinismo, preservando muitos vestígios do culto católico, tendo sido por isso considerada pelos Reformadores mais fundamentalistas como uma via media entre Roma e Genebra.
[7] A partir de 1560.
[8] O dogma foi inspirado nos ensinamentos de São Paulo, na Carta aos Romanos e na Carta aos Éfesios, tendo sido sistematizado por Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.
[9] Chadwick, Owen (1964, rpt. 1990), The Reformation, London, Penguin Books, pp. 177-8; Watkins, Owen C. (1972), The Puritan Experience, London, Routledge & Kegan Paul, pp. 9, 15, 82; Willen, Diane (1992), “Godly Women in Early Modern England: Puritanism and Gender”, in Journal of Ecclesiastical History, vol. 43, nº 4, October, p. 562.
[10] Cameron, Euan (1991, rpt. 1992), The European Reformation, Oxford, Clarendon Press, p. 385; Bainton, Roland H. (1973), Women of the Reformation in France and England, Augsburg Publishing House, Minneapolis, p. 243; Chadwick, Op. Cit., p. 432. Sobre o assunto, ver ainda Collinson, Patrick (1982), The Religion of the Protestants: The Church in English Society, 1559-1625, Oxford, Clarendon Press, 1982; Hill, Christopher (1958, rpt. 1990), Puritanism and Revolution, Harmondsworth, Middlesex, Penguin Books; Ibid., (1972, rpt. 1991), The World Turned Upside Down, Harmondsworth, Middlesex, Penguin Books; Ibid., (1993, rpt. 1994), The English Bible and Seventeenth-Century Revolution, Hardmondsworth, Middlesex, Penguin Books.
[11] Alguns exemplos são as iniciativas do reformador escocês John Knox, no século dezasseis, e as do círculo de Samuel Hartlib, no século dezassete. Na Europa continental, sobressai o nome do checo, João Amós Coménio (1592-1670), famoso pedagogo descendente de uma família pertencente à seita Irmãos Moravos, seguidores das doutrinas evangélicas de João Huss. Nas suas obras, Didáctica Magna (1627, 1657) e Pampaedia (ca. 1657) é clara a sua apologia do acesso à educação a toda a juventude. Coménio esteve em Inglaterra em 1641, a convite do puritano Samuel Hartlib (ver R. F. Young ed. (1932), Comenius in England, Oxford, OUP).
[12] Watkins, Op. Cit., p. 4; Chadwick, Op. Cit., pp. 420-1.
[13] Para efeitos do presente trabalho, o termo ‘Calvinista’ abarca os presbiterianos escoceses e os puritanos ingleses, sobretudo os dissidentes da Igreja Estabelecida de Inglaterra.
[14] Hill, Christopher (1993, rpt. 1994), The English Bible, Op. Cit., pp. 6-7, 34 e passim. Cf. Ibid., The World Turned Upside Down, Op. Cit., passim.
[15] Knox, John (1846-64), Works, ed. David Laing, 6 vols., Edinburgh, Wodrow Society Pub.
[16] O Catolicismo era uma forma de idolatria, sendo os governantes católicos considerados tiranos, por imporem a idolatria e por perseguirem os protestantes. Eram por conseguinte governantes a resistir, combater ou depor, pelas armas se necessário. Este assunto encontra-se desenvolvido na minha tese de doutoramento intitulada A Reforma da Igreja em Inglaterra: o Protestantismo como Factor Dinamizador da Democratização Política e dos Sexos (Fev. de 2000), apresentada na Universidade da Madeira.
[17] Hill, The English Bible, Op. Cit., pp. 250-6.
[18] Serrão, Joel (1971), Dicionário de História de Portugal, Iniciativas Editoriais, vol. II, pp. 729-40; Dicionário Enciclopédico da História de Portugal (1985), Pub. Alfa. Kalley conheceu alguns dos liberais portugueses revoltosos em Londres (Informação amavelmente cedida pelo meu colega, o historiador Professor Doutor João Adriano Ribeiro).
[19] Vasconcellos, Manuel de Santana e (1845), Revista Historica do Proselytismo Anti-Catholico Exercido na Ilha da Madeira pelo Dr. Robert Reid Kalley, Funchal, Typographia do Imparcial, p. 27. Este madeirense chama a D. Pedro de “Usurpador da coroa Portugueza”, de cuja “tyrannía e barbaridade a “classe independente dos madeirenses” foi vítima.
[20] Vasconcellos, Op. Cit., preâmbulo.
[21] Kalley, R. R., Exposição de Factos, Op. Cit.
[22] Vasconcellos, Op. Cit., p. 2.
[23] Vasconcellos, Op. Cit., p. 7.
[24] ‘Summario Eclesiástico’, datado de 9 de Maio de 1843 e assinado pelo Vigário Geral, Sebastião Casemiro de Vasconcellos, in Vasconcellos, Op. Cit. pp. 87-9. [Neste Sumário figuram os seguintes nomes de madeirenses acusados de sectarismo: freguesia de S. Roque: João Martins; Francisco da Silva e sua mulher; Maria de Jesus (solteira); freguesia de St. Luzia: Maria Efigénia, filha de Luiz Figueira; Luiza Candida, filha de Francisco da Silva; Jacinta, filha de Francisco Silvestre; freguesia da Sé: João de Souza e sua mulher; Arsénio Nicós da Silva; Úrsula Augusta (solteira); Luiza, filha de João de Souza; freguesia de São Martinho: João de Caires; Antónia da Encarnação; freguesia de Stº António: José de Freitas; José Teixeira; do Beco do Cemitério: Maria de Souza; freguesia de S. Pedro: Maria, mulher de José Rodrigues; Quitéria e sua filha Maria do Espírito Santo; da Pena: Gerarda Augusta e sua irmã Maria Carolina, filhas de Zacarias; do Pilar: Antónia Maria, mulher de António Fernandes (num total de 7 homens e 16 mulheres)].
[25] Kalley, R. R., Exposição de Factos, Op. Cit.
[26] Segundo Kalley, em 1843 já tinham sido alfabetizado mais de 800 adultos nas escolas que estabelecera em diferentes partes da Ilha (Kalley, R. R., Exposição de Factos, Op. Cit.).
[27] Vasconcellos, Op. Cit., pp. 6, 19-22. A Alfândega do Funchal dificultava-lhe a entrega dos livros que mandava vir de Inglaterra (Arquivo Regional da Madeira, ‘Alfândega do Funchal’, Lº 159, f. 144vº-145).
[28] Tal como durante o período da Reforma da Igreja em Inglaterra durante o século XVI, muitas mulheres madeirenses converteram-se à Fé Protestante e nela participaram activamente. Ver alguns nomes e referências in Vasconcellos, Op. Cit., pp. 49, 71-72, 76, 87-88, 90-91.
[29] Vasconcellos, Op. Cit., p. 66; Kalley, R. R., Exposição de Factos, Op. Cit. Para esse efeito, o Governador Civil recorreu à “Ley de 20 de Setembro de 1844 sobre a Instrucção publica do Reino, que exige certas habilitações para os professores particulares”.
[30] Rainha D. Maria II.
[31] D. Januário Vicente Camacho.
[32] Vasconcellos, Op. Cit., p. 4.
[33] Vasconcellos, Op. Cit., p. 5. Em nota de rodapé, Manoel de Sant’Anna e Vasconcellos refere ter ele próprio redigido uma dessas Representações, para a qual obteve grande número de assinaturas, assegurando que assim o fizera por, na época, ainda acreditar que, nos actos do Dr. Kalley “apenas entravam vistas philantropicas, e não os interesses da propaganda religiosa”. Ver também O Defensor, nº 42, de 2 de Junho de 1841; Silva e Meneses, Op. Cit., p. 207.
[34] Comissão constituída por três Capitulares, nomeada a 20 de Maio de 1841.
[35] Vasconcellos, Op. Cit, pp. 6, 19-22.
[36] Tradução a partir da Vulgata, a Bíblia traduzida para o latim por São Jerónimo (versão canónica desde então adoptada pela Sé de Roma).
[37] Pastoral de 26 de Setembro de 1843, in Vasconcellos, Op. Cit, pp. 19-20; Kalley, R. R., Exposição de Factos, Op. Cit.
[38] Pastoral de 26 de Setembro de 1843, in Vasconcellos, Op. Cit, pp. 20-22, 29-30. Ver o protesto de Kalley contra esta arbitrariedade in Kalley, Robert Reid (1844), An Account of the Recent Persecutions, Londres, p. 6.
[39] Kalley, R. R., Exposição de Factos, Op. Cit.
[40] Kalley, R. R., Exposição de Factos, Op. Cit.; Ibid., An Account of the Recent Persecutions, Op. Cit., pp. 7-8; Cf. Vasconcellos, Op. Cit, pp. 30-33.
[41] É importante aqui sublinhar que a Fé protestante, sobretudo o credo calvinista, foi a Fé com a qual os comerciantes britânicos, especialmente a alta burguesia mercantil, melhor se identificaram. Segundo estudiosos da evolução da sociedade capitalista, nomeadamente Max Webber e Tawney, o protestantismo forneceu à emergente burguesia mercantil um suporte ético que muito contribuiu para o crescimento e consolidação da sociedade capitalista: Max Webber (1930), The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, tr. by Talcott Parsons, London; R. H. Tawney (1926), Religion and the Rise of Capitalism, London, John Murray, rpt 1964.
[42] Silva e Meneses, Op. Cit., p. 208. Kalley contava também com apoios na própria Grã-Bretanha: Ransom & C.º, de Pall Mall East, Williams, Deacon & C.º, de Birchin Lane, Shaw de Southampton, e Nisbet & C.º, de Berners Street, são nomes de firmas inglesas mencionadas como fontes de subsídio das práticas heréticas de Kalley na Ilha da Madeira, in Vasconcellos, Op. Cit, p. 61. Há também notícias da presença na Madeira de comerciantes americanos nesta época. Exemplo disso é George Day Wells, negociante de vinho da Madeira e administrador dos bens do Conde Carvalhal, durante o período em que este permaneceu em Lisboa. [Livro do Notário nº 2024, fls. 7v; 226, 31, 31v, 51v, 54v (informação amavelmente cedida pelo colega historiador, Professor Doutor João Adriano Ribeiro)].
[43] Ofício de Valentim Mendonça Drummond, Administrador do Concelho interino, 2ª Repartição, dirigido ao Governador Civil, datado de 15 de Fevereiro de 1843, in Vasconcellos, Op. Cit, pp. 79-81.
[44] Ofício de João Chrysostomo Ferreira Uzel, 16 de Março de 1843, in Vasconcellos, Op. Cit, p. 81.
[45] Kalley, R. R., Exposição de Factos, Op. Cit.
[46] A 1ª Carta Constitucional portuguesa, elaborada pelas Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes, reunidas em Lisboa em 1821, instituiu a Monarquia Constitucional, decretada em 23 de Setembro de 1821. A Constituição de 1822 é considerada mais radical do que todas as constituições posteriores. [Casa Forte da Torre do Tombo (CF. 181 e 182)].
[47] Tratado acabado de ser ratificado em 29\07\1842. [Torre do Tombo, Arquivo da Casa da Coroa, Tratados (gavetas), Catálogo C 1061-1062].
[48] Resposta por escrito, datada de 17 de Março de 1843, apensa in Kalley, R. R., Exposição de Factos, Op. Cit.; Ibid., An Account of the Recent Persecutions, Op. Cit., p. 3. Cf. Vasconcellos, Op. Cit. pp. 23 e segs.
[49] Edital mandado publicar pelo Governador Civil, Domingos Olavo Correia de Azevedo, a 17 de Março de 1843, reproduzido in Vasconcellos, Op. Cit, pp. 81-83.
[50] Kalley, R. R., Exposição de Factos, Op. Cit.
[51] Serrão, Joel (1971), Dicionário de História de Portugal, vol. II (Liberalismo).
[52] O Catolicismo continuou a ser uma Fé proscrita, sobretudo por motivos decorrentes das pretensões de hegemonia política das Nações católicas sobre a Grã-Bretanha.
[53] Locke, John, (1690), Of Civil Government, Two Treatises, ed. Ernest Rhys, London, Everyman's Libibrary.
[54] John Locke expressa as suas teorias sobre religião sobretudo nas suas Letters on Toleration. A primeira, Epistola de Tolerantia (1689) foi publicada anonimamente na Holanda, sendo logo traduzida para o holandês e o francês; a esta epístola seguiram-se a publicação de A Second Letter concerning Toleration (1690); A Third Letter for Toleration (1692), bem como a de uma quarta, inacabada (publicada postumamente em 1706).
[55] Ponet, John (1556), A Short Treatise of Politike Power, London, British Library, [c. 122.c.35].
[56] Knox, John (1846-64), Works, Op. Cit.
[57] Goodman, Christopher (Geneva, 1558, fac-símile, 1931), How Superior Power Ought to be Obeyed, New York, Colum­bia University Press, London, British Library [Ac. 9730 (2)].
[58] Wooton (ed., 1986), Divine Right and Democracy, An Anthology of Political Writings in Stuart England, Harmondsworth, Middlesex, Penguin Books, p. 67; Brailsford, Henry N. (1961, rpt. 1976), The Levellers and the English Revolution, London & Nottingham, Bertrand Russell Peace Foundation, Spokesman Books, pp. 97-8.
[59] Sabine, George H. (41973), A History of Political Theory, rev. by Thomas Landon Thorson, San Diego, Harcourt Brace College Publishers, pp. 515-17.
[60] Montesquieu, de visita a Inglaterra em 1729, viu na monarquia constitucional inglesa, instituída com a Revolução Gloriosa (1688-9), uma forma de governo ideal. Partindo do pensamento político de John Locke, idealizou um sistema de governo com total separação dos poderes — Executivo, Legislativo e Judicial (ver L’Esprit des lois (1748) —, modelo adoptado pela Constituição americana e pela francesa, bem como por outras nações que optaram por governos constitucionais.
[61] Exilado em Inglaterra entre 1726-9.
[62] Voltaire (1733, 1980), Letters on England, tr. & int. by Leonard Tancok, Harmondsworth, Penguin Classics.
[63] Montesquieu e Voltaire naturalmente comparavam o liberalismo britânico com o regime absolutista de Luís XIV — o mais despótico de todos os soberanos franceses.
[64] Kalley, R. R., Exposição de Factos, Op. Cit.
[65] Vasconcellos, Op. Cit. pp. 17-19, 85-89.
[66] Vasconcellos, Op. Cit. pp. 9, 16, 85. Nicolau Tolentino Vieira era conhecido como moço de Kalley; Francisco Pires Soares fora “operário n’uma Igreja presbyteriana estabelecida”, no Funchal.
[67] Vasconcellos, Op. Cit. pp. 19, 23. Cf. Kalley, R. R., An Account of the Recent Persecutions, Op. Cit., p. 3.
[68] O Defensor, nº 210, de 6 de Janeiro de 1844 e O Imparcial, nº 184, de 15 de Março de 1844.
[69] Vasconcellos, Op. Cit., pp. 63-64.
[70] Vasconcellos, Op. Cit., pp. 65, 71.
[71] Relação das escolas ‘kallistas’ mandadas encerrar e nomes de respectivos Mestres: em Stª Cruz: Manoel Joaquim d’Andrade; na Ribeira de Machico: Henrique Vieira; em Stº António da Serra: Martinho José de Sousa; no Porto da Cruz: Eugénia Leonarda Bettencourt; em Stº António (Laranjal): Thereza Carolina (italiana, mulher de Martino José de Sousa); em Stª Mª Maior (Boa Vista): João Correa; em Stº António (Sítio de Stº Amaro): Gregoria Luiza; em Stº António (Sítio dos Romeiros): Maria Carolina (Vasconcellos, Op. Cit., pp. 68, 90-91).
[72] Vasconcellos, Op. Cit., pp. 75-76, 89-90.
[73] As freguesias da Sé, de S. Pedro, de Stª Luzia, de Stº António, de S. Roque e de S. Martinho são algumas das localidades onde as autoridades encontraram prosélitos de Kalley (Vasconcellos, Op. Cit., pp. 88-89).
[74] O Defensor, nº 227, de 4 de Maio de 1844; Kalley, R. R., An Account of the Recent Persecutions, Op. Cit., p. 25. Cf. justificação da pena in Vasconcellos, Op. Cit., pp. 49-50.
[75] Vasconcellos, Op. Cit., pp. 92, 72.
[76] Nome dado aos seguidores de Kalley.
[77] Os escritos coevos e subsequentes referentes à evangelização protestante na Ilha da Madeira são extremamente parciais, tendenciosos, arbitrários e até caricatos. São assim uma fonte preciosa para a ilustração do grau de
de intolerância religiosa contra todos aqueles que não professassem a Fé católica ou que dela abjurassem.
[78] Vasconcellos, Op. Cit., pp. 33 e segs.; Silva e Meneses, Op. Cit., p. 208.
[79] O equivalente a £ 1574.
[80] Secretaria d’Estado dos Negócios Estrangeiros, em 20 de Junho de 1853 — Visconde de Athouguia; Silva e Meneses, Op. Cit, p. 208.
[81] Vasconcellos, Op. Cit., p. 83; Silva e Meneses, Op. Cit, p. 208.
[82] Warrin, Donald (1983), “Os Açorianos e outra gente portuguesa em Nevada: uma colónia esquecida,” in Actas do II Colóquio Os Açores e as Dinâmicas do Atlântico, Inst. Histórico da Ilha Terceira, pp. 856-86. António Monteiro acompanhou o capitão Benjamin Bonneville às terras de Wyoming e Montana, em 1833. No ano seguinte, fundou uma feitoria fortificada, conhecida pelo nome de Portuguese Houses ou Fort Antonio, onde negociava com peles, tabaco, farinha, café, açúcar e pólvora.
[83] Warrin, Op. Cit.
[84] Silva e Meneses, Op. Cit., p. 208.
[85] Warrin, Op. Cit.
[86] Talvez parente de Robert Kalley. Josiah Kelley casou com Fanny Wiggins (Kelly), nascida em Orillia, no Canadá, em 1845. Fanny e seus pais, James Wiggins e esposa, mudaram-se para os EUA. Partindo de Nova Iorque, avançaram para o Oeste. No percurso, James Wiggins pegou cólera e morreu, mas Fanny e a mãe continuaram a viagem, acabando por comprar uma fazenda no Kansas, em 1856. Movidos pela retórica da expansão, Josiah Kelly, com a mulher e Mary—sua filha adoptiva—, decide avançar mais fronteira adentro procurando os ‘montes dourados de Idaho. No percurso, foram atacados pelos Sioux, no dia 12 de Julho de 1864. Josiah conseguiu escapar, mas Fanny e Mary foram capturadas, só sendo libertas cinco meses mais tarde, quando a família reunida voltou para o Kansas, onde abriu um hotel, em Ellsworth. Fanny foi a primeira mulher a ali se estabelecer. (Christopher Castiglia (1989), Bound and Determined, Chicago & London, The University of Chicago Press, p. 70).
[87] Warrin, Op. Cit.

Nota do Blogue: Inicialmente era minha intenção transcrever apenas algumas passagens deste artigo, mas atendendo à qualidade do mesmo optei por transcreve-lo na ìntegra.
Para além deste artigo a Drª Maria Zina Gonçalves de Abreu publicou o seguinte artigo:
- “Implantação da Fé Protestante na Ilha da Madeira: Perspectiva Cultural do Proselitismo de Robert Reid Kalley: 1838-c.1846”, in Revista Islenha 29 (Funchal: Direcção Regional dos Assuntos Culturais, 2001), pp. 79-101.

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