quinta-feira, abril 30, 2009

«Obras de D. Francisco Alexandre Lobo, Bispo de Vizeu»

Obras de D. Francisco Alexandre Lobo, Bispo de Vizeu, Tomo II
Lisboa, Typographia de J. B. Morando, 1849
http://books.google.pt/books?id=jtI9AAAAIAAJ&pg=PA173&dq=Discurso+Hist%C3%B3rico+e+Cr%C3%ADtico+acerca+do+Padre+Ant%C3%B3nio+Vieira+e+das+suas+Obras&lr=&as_brr=0&as_pt=ALLTYPES&ei=DBr6SZnfBZnCyATGm72NBg&hl=pt-BR#PPP7,M1
Obras de d. Francisco Alexandre Lobo, Bispo de Vizeu, Tomo III
Lisboa, Typographia de J. B. Morando, 1853
http://books.google.pt/books?id=FtI9AAAAIAAJ&printsec=frontcover&dq=Obras+de+d.+Francisco+Alexandre+Lobo,+bispo+de+Vizeu&lr=&as_brr=0&as_pt=ALLTYPES&ei=xxv6SY6uOpWOyASq14GuBQ&hl=pt-BR

«As Rotas Marítimas Portuguesas no Atlântico (...)» - A. Teixeira da Mota

As rotas marítimas portuguesas no Atlântico de meados do século XV ao penúltimo quartel do século XVI.
A. Teixeira da Mota
Do Tempo e da História, volume III, pp. 13-33, 1970.
http://www.fl.ul.pt/unidades/centros/c_historia/Biblioteca/III/2-As%20Rotas%20Maritimas%20Portuguesas%20no%20Atlantico%20de%20Meados%20do%20Seculo%20XV.pdf

«Vieira (Padre António)» - Portugal Dicionário Histórico


Vieira (Padre António).

n: 6 de Fevereiro de 1608.

f: 18 de Julho de 1697.

Um dos homens mais notáveis de Portugal, um dos mestres da nossa língua um dos primeiros pregadores do seu tempo, um homem cuja inteligência vastíssima abrangia todos os assuntos e resplandecia em todos os campos.
N. em Lisboa a 6 de Fevereiro de 1608, sendo baptizado no dia 15 desse mês na Sé metropolitana da mesma cidade; fal. na Baía a 18 de Julho de 1697. Era filho de Cristóvão Vieira Ravasco, fidalgo de nobre ascendência, e de D. Maria de Azevedo.
Nos fins de 1615 partiu com a sua família para a Baía, não se sabe bem, porque motivo, supondo com grande fundamento João Francisco Lisboa que foi por seu pai ter sido nomeado secretário do governo da Baía, lugar que efectivamente por muito tempo exerceu. A 20 de Janeiro de 1616 iam naufragando nos baixos da Paraíba, e quase milagrosamente se salvaram. Ainda depois teve António Vieira uma gravíssima doença, de que escapou para glória do seu nome e da sua pátria, que tanto havia de ilustrar com o seu maravilhoso engenho.
Começou a estudar no colégio da Companhia de Jesus, mostrando, contudo, no princípio dificuldades em aprender. É de crer que os padres jesuítas, vendo o grande talento que o seu juvenil discípulo manifestava, procurassem o mais possível, como sempre faziam, atrai-lo ao seu grémio. Diz o próprio P. António Vieira, que sentiu uma grande vocação para a vida religiosa numa tarde de Março de 1623, quando estava ouvindo o P. Manuel do Carmo pregar, fazendo uma descrição do inferno. É bem possível, que efectivamente, sentindo desabrochar em si próprio o talento oratório, e percebendo que só no púlpito o poderia manifestar dum modo prestigioso, se sentisse arrastado para a carreira que tais triunfos lhe proporcionaria. Um dia manifestou a seus pais a vontade que tinha de professar, e eles opuseram-se terminantemente. Procuraram por todas as formas dissuadi-lo desse desejo, mostrando lhe todos os seus inconvenientes, e tentando chamá-lo à razão, mas nada conseguiram. Cristóvão Ravasco manteve-se firme na recusa, e o filho esperou que o tempo o tornasse menos intransigente. Como assim não acontecesse, na noite de 5 de Maio de 1623 fugiu da casa paterna e foi para colégio dos jesuítas. Parece que os padres não seriam estranhos a essa resolução, porque, conforme dissemos, eles procuravam por todos os modos chamar para o seu instituto as grandes inteligências, e não desperdiçariam decerto um tal discípulo. Os pais empregaram ainda todos os esforços para o arrancarem do poder dos jesuítas, mas António Vieira não se dissuadiu do seu propósito, e no fim dos dois anos de noviciado fez os primeiros votos, e a 6 de Maio de 1625 passou à classe dos escolares, ligando se então por votos secretos e tomando cargo das obrigações do ensino.
Tão precocemente se desenvolvia o seu talento, que aos 17 anos de idade já era encarregado de escrever em latim as anuas que eram enviadas da província ao geral de Roma, e aos 18 era mandado leccionar retórica no colégio de Olinda, e depois filosofia dialéctica. Ali se manifestaram também brilhantemente as suas admiráveis faculdades intelectuais, fazendo ele uns comentários a Séneca e a Ovídio, comentários que se perderam, como os que fez, como teólogo, a várias passagens da Escritura. Aos 20 anos frequentava teologia, e os superiores lhe permitiam redigir uma apostilha para as suas próprias lições; aos 30 era nomeado mestre de teologia. Passou ao 3.º grau da Companhia, dos coadjutores espirituais, e depois de ter dito a primeira missa, em 1635, começou a exercer as funções de pregador, inerentes ao referido grau. As suas provas estavam dadas, e só lhe faltava a idade para se elevar a professo e ser admitido ao 4.º voto, pelo qual reconhecia o papa como único poder legítimo na terra. Como pregador, revelou desde logo os prodigiosos dotes oratórios que o distinguiam. Pode mesmo dizer-se que ascendeu, logo nos primeiros sermões, aos mais altos da oratória, porque foi em 1610 que pregou o seu famoso sermão contra os holandeses. As circunstâncias eram terríveis. A Baía já fora ameaçada pelas armas de Maurício de Nassau, e os desastres sucediam-se uns aos outros com a maior rapidez. Foi então que na catedral da Baía se começaram a fazer preces pelo sucesso das armas portuguesas que tão infelizes andavam. Num dos dias de preces coube ao P. António Vieira a vez do pregar. Tomou por texto do sermão a frase: Exurge, quare obdormis, Do mine? Dirigindo-se a Deus, não como suplicante mas como censor, num rapto sublime de patriotismo e de dor, dirigiu à Providencia essa famosa apostrofe, que é um dos trechos mais belo os da tribuna sagrada ou profana de todos os países, apostrofe em que a acusa amargamente de ter abandonado os seus fiéis portugueses que pela fé tantos sacrifícios fizeram, para proteger os hereges da Holanda, que eram os seus inimigos. E rematando com uma ironia sublime, diz a Deus que há-de ser bem pago daquelas complacências, que da sua tão favorecida Holanda receberá a condigna recompensa das suas predilecções, porque a Holanda lhe mostrará como lhe há-de dar adorações e culto. Não se conhece rapto algum de eloquência que exceda em força e em energia a este admirável trecho. Devia produzir uma comoção eléctrica nos ouvintes e pôr-lhes em vibrações a fibra patriótica. O que se vê, porém, desse sermão, pregado em princípios de 1610, é que já nesse tempo o P. António Vieira era um orador de primeira ordem, que excedia a todos os do seu tempo em todo o mundo, porque não começara ainda a tornar-se notável o pregador francês Bossuet, o único que se lhe pode pôr a par.
Pouco tempo depois chegou à Baía a notícia da restauração de Portugal e da aclamação de D. João IV. Acompanhou o marquês de Montalvão o movimento nacional, e querendo participar isso para Lisboa, mandou seu filho D. Fernando de Mascarenhas cumprimentar o novo monarca e oferecer-lhe a sua homenagem. Não o deixou, porém, vir só; deu-lhe por companheiros de viagem e mentores o P. António Vieira e o P. Simão de Vasconcelos, cronista da Companhia de Jesus. Os três saíram da Baía a 27 de Fevereiro de 1641 e sofreram tão violenta tempestade durante a viagem, que não puderam ir aportar a Lisboa, como queriam, mas sim a Peniche, que era então governada pelo moço conde de Atouguia. Chegaram em fins de Abril, e tiveram uma recepção hostil. Ao saber-se em terra que vinha a bordo o filho do marquês de Montalvão, o povo amotinou-se. É que a marquesa de Montalvão e os filhos que com ela viviam no continente europeu, tinham seguido o partido de Castela, e portanto eram considerados traidores à pátria tanto este filho que chegava do Brasil, como os dois padres jesuítas que o acompanhavam. 0 conde de Atouguia quis protege-los contra a fúria do povo, mas não conseguiu evitar que o P. António Vieira fosse agredido e que o filho do marquês recebesse um ferimento na cabeça. Foi metendo este último na cadeia, que o conde de Atouguia conseguiu salvar-lhe a vida, ao passo que o P. António Vieira descobria traças de seguir para Lisboa na dia 30, e nesse mesmo dia falar ao rei, que o recebeu com a maior afabilidade.
Foi no dia 1 de Janeiro de 1642 que o P. António Vieira pregou pela primeira vez em Lisboa na capela real. «Se houvermos de dar crédito, diz o seu biógrafo João Francisco Lisboa, ao testemunho unânime de amigos e inimigos, foi verdadeiramente prodigioso o efeito produzido. O orador sabia perfeitamente moldar-se ao gosto e necessidade do tempo, assim na escolha e preferência dos assuntos, como nos ornatos dó estilo e meneios oratórios, se bem a incontestável superioridade do seu talento corrigisse ou atenuasse em grande parte os vícios mais comuns entre os seus contemporâneos. Ou agitasse as grandes questões políticas como a restauração da independência nacional, a paz, a guerra, os meios de sustenta-la, ou tratasse doa assuntos simplesmente religiosos e morais mais próprios do seu ministério, o estilo, ora grave, solene levantado, ora brando e familiar, segundo a ocasião, a eficácia e nobreza da declamação e do porte, certa novidade no modo de opor e argumentar, que trazia o cunho particular do seu engenho, a facilidade, pureza, copia e energia de linguagem, tudo lhe atraiu e avassalou a multidão, para conter a qual eram ordinariamente insuficientes os templos mais vastos . Acolhido pelo rei como amigo dilecto, exerceu logo a máxima influencia na política do seu tempo. Eram os seus sermões muitas vezes verdadeiros discursos políticos com que procurava fazer triunfar na opinião publica as medidas que se pretendiam adoptar, tal é, por exemplo, o seu notável sermão de Santo António, pregado quando estavam reunidas as cortes em Lisboa, para conseguir que todos, nobreza, clero e povo, contribuíssem com o pagamento dos impostos para se acudir ao perigo geral.
De facto, a ascendência do P. António Vieira sobre o ânimo de D. João IV era a mais completa que possa imaginar-se; ele tinha entrada. franca no paço, assistia ás conferências do rei com os ministros, vivia nas secretarias do Estados, e os tribunais e juntas eram obrigados a ir conferenciar com ele, cujo parecer era apresentado por escrito ao rei. Parece que esta sua ingerência nos negócios públicos, ingerência em que os seus sentimentos patrióticos tomaram muitas vezes o passo ás suas ideias de jesuíta, lhe causou desgostos no seio da Companhia de Jesus, que parece ter pensado em o e expulsar, ao que obstou D. João IV. Também parece que, por essa ocasião, o rei o quis fazer bispo, para o libertar da tutela da Companhia, e que ele rejeitou a mitra. Mas deixar a política, não o fazia ele, porque tinha uma vocação. incontestável. São admiráveis os seus pareceres a respeito de diversos assuntos, inclusivamente a respeito de assuntos de guerra, sendo a carta em que ele aconselha a guerra defensiva uma das mais sensatas da sua vasta colecção epistolar. A ele se deveu a organização duma companhia de comercio, no género das que tinham feito a gloria e a riqueza da Holanda, e apesar da companhia de comercio portuguesa não chegar a ter nunca o mesmo desenvolvimento, contudo prestou na restauração das nossas colonial relevantes serviços. Nesta sua campanha a favor da companhia do comércio sustentou Vieira algumas ideias notavelmente arrojadas para o seu tempo, e que não contribuíram pouco para a inimizade que a Inquisição lhe votou.
Pregou a doutrina da tolerância com os judeus para que Portugal pudesse reaver a riqueza que se estava acumulando na Holanda, dizia que a troco da, sua participação na companhia do comercio se devia ter com eles a máxima tolerância, e não o disse só, e não o escreveu simplesmente nos seus livros, mas pregou o até nos seus sermões. Em Roma fizeram a tudo isso a maior oposição, ' conseguiram que se revogasse um alvará pelo. qual se concedia que os bens dos que fizessem„ parte da companhia do comércio ficassem isentos de confisco, ressalvando assim os bens dos cristãos novos. Entretanto, cada vez mais confiado na vasta inteligência do P. António Vieira, D. João IV, depois de o nomear pregador da sua câmara e mestre de seu filho o príncipe herdeiro D. Teodósio, deliberou tombem empregá-lo na diplomacia, e mandou-o como seu enviado particular, sem carácter algum oficial, a França e à Holanda, em Março de 1646, e nessa primeira viagem, tratou apenas de se informar do que se pensava a nosso respeito no seio dos gabinetes francês e holandês, exercendo uma certa fiscalização sobre os actos dos ministros, coisa que em resultado deu bastantes queixas e protestos. Na segunda viagem, que foi em 1647, tratou já de assuntos importantes em Paris com o cardeal Mazarino, em Haia com os Estados. Em Paris teve grandes contendas com o cardeal Mazarino para impedir a realização de um projecto em que fazia o máximo empenho Mazarino, que era o de casar o príncipe D. Teodósio com mademoiselle de Lougueville, vindo para Portugal o príncipe de Condé, que ficaria regente do reino até o príncipe D. Teodósio, chegar à maioridade, retirando-se D. João IV para o Brasil. Esse projecto concorreu muito o P. António Vieira para que se dissipasse. Em Amesterdão não prestou o P. António Vieira ao seu país idênticos serviços, porque foi, e é essa a grande mácula da vida política deste sábio e perspicacíssimo varão, um dos que supuseram que Portugal não podia resistir ás forças da Espanha na Europa, e ás da Holanda na América, foi um dos que imaginaram que era preferível ceder à Holanda de vez o que na América se lhe contestava, e se lhe contestava vitoriosamente, abandonando ao seu destino aqueles heróicos rebeldes de Pernambuco, que sem auxilio da pátria, antes renegados por ela, teimavam em querer ser portugueses. Francisco de Sousa Coutinho, ministro português na Haia, chegou e de certo de acordo com o P. António Vieira a assinar em nome do rei de Portugal a cedência da capitania de Pernambuco aos holandeses. Foi, alegava ele depois, o único modo que teve de impedir a saída duma esquadra holandesa, que ia decerto esmagar, debaixo de forças imensamente superiores, a insurreição pernambucana. É certo, porém, que o P. António Vieira, não só nessa ocasião, mas depois em Portugal e em frequentíssimas ocasiões, defendeu a todo o transe a ideia da paz com a Holanda, a troco da cedência de Pernambuco, escrevendo até um parecer, que teve o título de Papel forte, que lhe deu D. João IV. por achar fortíssima a sua argumentação.
Prevaleceu, contudo, a opinião contraria à do rei e à do seu inteligentíssimo conselheiro, ou antes vieram as dilações e demoras da discussão impedir que se fizesse coisa alguma, e entretanto iam correndo em Pernambuco os sucessos tão prósperos, para nós, que, contra a vontade do rei, novamente passou à coroa portuguesa a opulenta província de Pernambuco. 0 P. António Vieira nunca pôde resignar-se a confessar abertamente o seu erro e a sua culpa, dizendo apenas algumas vezes que ele se guiara pelos lumes falíveis da razão, em vez de confiar nos milagres da Providencia. Numa carta, porém, que escreveu ao conde da Ericeira, para rectificar alguns pontos que lhe pareceram menos, exactos do Portugal restaurado, procurou tornar Francisco de Sousa Coutinho exclusivamente responsável pela política de transigência com os Países Baixos. Era uma pequena traição. 0 Papel forte bastava para depois demonstrar que o P. António Vieira sempre tivera pouquíssima confiança no resultado da luta com os holandeses, e que opinava abertamente pela política da conciliação e da transigência, à custa dos mais caros interesses de Portugal na América. Em 1650 partiu ele em nova missão diplomática, missão de. alta Importância, posto que não fosse decerto das mais patrióticas. Tratava-se de se pôr termo à guerra entre Portugal e a Espanha, por meio do casamento do príncipe D. Teodósio com uma filha de Filipe IV.
Era a reconstituição da união ibérica que se planeava assim, fazendo-se de Lisboa a capital de toda essa vasta monarquia, e ficando assim esse trono na Casa de Bragança. Vieira devia ir a Roma tratar esse negócio, todo de interesse da dinastia mas contrário ao interesse nacional, com o embaixador de Espanha junto da Santa Sé, duque do Infantado, mas ao mesmo tempo era incumbido também duma missão contraditória, porque o encarregavam de fomentar a revolução de Nápoles, que rebentara por esse tempo, o que podia ser uma feliz ocorrência para o governo de Portugal. Resultou desta dupla missão o não poder conseguir coisa alguma. Os revolucionários de Nápoles queixaram-se de que o agente português nada fizera por eles, e o duque do Infantado, sabedor do que se tramava, fez saber ao geral dos jesuítas que, se não fizesse sair imediatamente de Roma o P. António Vieira, teria de dar ordem para que o jesuíta português fosse assassinado. Vieira saiu, portanto, muito à pressa de Roma, malogrando-se, felizmente para Portugal, a sua nefasta missão. Regressando a Portugal, encontrou em Lisboa discórdia entre a família real. O príncipe D. Teodósio, discípulo amado dos jesuítas, e muito especialmente do P. António Vieira, apareceu de súbito secretamente no exército do Alentejo, coisa em que o rei seu pai se mostrou muito melindrado, fazendo-o recolher a Lisboa, pouco depois da sua partida. Uma carta que o P. António Vieira escrevera ao príncipe, dando-lhe conselhos, serviu de base à acusação que lhe fizeram de ter sido ele que aconselhara ao príncipe essa expedição que tanto desagradara ao rei. Foi de certo essa acusação que modificou bastante as disposições do rei para com o seu favorito, porque o era incontestavelmente e muito o P. António Vieira. D. João IV protegeu-o por largo tempo contra os seus inimigos, que não eram poucos, entrando principalmente nesse número os seus superiores e confrades. Admira que uma companhia tão desejosa de preponderância, se mostrasse hostil a um dos seus que alcançara do príncipe a mais absoluta privança, que dominava o animo de toda a família, que possuía altíssimos talentos e enorme influencia política Mas é que o P. António Vieira mostrava uma certa independência, que era completamente contrária ao dogma fundamental da companhia, que era o da obediência cega às ordene superiores. O P. António Vieira trabalhava por sua conta, e pensava mesmo em introduzir reformas na Companhia, coisa que os mais antigos da ordem lhe levavam muito a mal. Daí resultou que os seus superiores desde 1614 lhe ordenassem positivamente que partisse para as missões do Maranhão. Vieira conseguiu por muito tempo iludir essas ordens sucessivas, protestando ao princípio as suas missões políticas a Madrid e a Sabóia, valendo-se depois de todos os recursos possíveis, e ia ficando. Um dia simulou que obedecia às ordens superiores e embarcou, mas conseguiu que daí a pouco o rei o mandasse desembarcar e voltar ao Paço. Entretanto, a paciência da Companhia ia se apurando, e o favor do rei para com ele desaparecia, pelos motivos já citados, e a 22 de Novembro de 1652 recebeu ordens terminantes de embarcar para o Maranhão, e efectivamente embarcou, porque já lhe era impossível iludir por mais tempo essas ordens. Contava, porém, que a bordo encontraria ou receberia ordem do rei para não seguir viagem, e tal não aconteceu.
A sua influência no ânimo do rei estava morta. Teve de partir, pois, e numa carta que de Cabo Verde escreveu ao príncipe D. Teodósio, dizia-lhe que estava aflitíssimo com a sua imprevista partida. Foi esse o justo castigo da sua duplicidade, porque, fingindo sempre que todo o seu desejo era servir a causa da religião católica, e que só muito constrangido obedecia às ordens reiteradas do rei que não podia passar sem ele, afinal foi vitima da sua própria astúcia, e teve de partir profundamente ferido no seu amor próprio, ao ver que D. João IV se desprendera com facilidade dos laços em que julgara tê-lo perpetuamente preso. Foi bastante trabalhosa a viagem. O navio teve de arribar a Cabo Verde, onde sé demorou algum tempo, desembarcando Vieira para pregar, causando tanto sucesso que a população manifestou desejos de que ele ficasse na ilha, tendo Vieira de embarcar quase secretamente para seguir a viagem. No princípio de 1653 chegou ao Maranhão, onde foi recebido com muito jubilo, mas onde teve logo que lutar, como superior do colégio dos jesuítas, com a má vontade do capitão general e também com a má vontade do povo. Defendiam os jesuítas nessa ocasião uma causa justíssima naquela capitania brasileira, a causa da liberdade dos índios. Queriam os portugueses residentes no Maranhão conserva-los escravizados, queria o governo emancipa-los, queria emancipai os também a Companhia, e quando no Maranhão se publicou uma lei mandando restituir à liberdade os índios cativos, houve ali uma verdadeira sublevação, chegando a estar em perigo o colégio da Companhia. Valeu então de muito aos seus confrades e aos povoe daquela terra a voz prestigiosa e eloquente do P. António Vieira, que muitas vezes, pregando na catedral, amansou e acalmou as inquietações e turbulências populares. Contudo, viu ele bem, porque foi necessário transigir com os que possuíssem índios escravos, que aquele estado de coisas era insustentável e que se tornara indispensável alcançar do governo da metrópole as medidas indispensáveis para garantir a liberdade dos índios.
Encarregou se o P. .António Vieira de ir solicitar em Lisboa essas resoluções, e partiu para Portugal, quase às escondidas, em Junho de 1659, depois de ter pregado ainda quase na véspera aquele famoso sermão de Santo António pregando aos peixes, que é uma das obras primas da sua eloquência. Seguiu para a Europa, e depois de ter padecido, como sempre lhe acontecia nas suas viagens marítimas, grandes tempestades, aconteceu-lhe também cair nas mãos dum pirata holandês, que, depois de roubar a embarcação,. pôs os roubados em terra nas ilhas dos Açores. Algum tempo se demorou Vieira naquele arquipélago, onde foi muito festejado, e na ilha de S. Miguel pregou, perante um auditório entusiasmado o seu admirável sermão de Santa Teresa. Chegou a Portugal no mês de Novembro de 1659, e encontrou o rei D. João IV perigosamente enfermo. Logo, porém, que melhorou, o monarca o mandou chamar a Salvaterra, onde estava. O P. António Vieira expôs-lhe então o assunto a que vinha, conquistou a sua adesão, conseguindo que se organizasse uma junta especial de missões, que se tomassem as medidas que ele desejava em relação aos índios, e partiu enfim de novo para o Maranhão a 16 de Abril de 1655. Durou 6 a 7 anos a sua permanência desta vez no Maranhão, e ali, fez maravilhas a sua infatigável actividade. Estabeleceu missões para o sul, até na serra Ibiapaba entre os Tobajaras, para o norte entre os Nhecujaibas, visitou as com frequência, correndo perigos e suportando as maiores fadigas. Teve, sobretudo, que sofrer a constante oposição dos portugueses, que afinal sublevando-se, investiram conta os colégios dos Padres jesuítas no Maranhão, na Baía e no Pará, sendo nesta ultima cidade preso o próprio P. António Vieira, que foi com os seus companheiros remetido para a Europa, onde chegou nos fins de 1661. Parece, todavia, que nem só do espiritual cuidavam os padres, mas que também entravam muito pelo temporal, invadindo os poderes civis, razão porque lhes aconteceu aquele desagradável facto. Os jesuítas procuravam estabelecer no Maranhão o regime que lograram instituir no Paraguai, pugnava por isso o P. António Vieira, e se bem que os portugueses que se lhe opunham, não tinham em mira senão defender os seus próprios interesses, é certo que nem dum nem doutro lado se defendia com pureza uma causa legitima e sagrada. Ao chegar de novo a Lisboa, o P. António Vieira encontrou a corte totalmente transformada. O rei havia falecido 4 anos antes, e o príncipe herdeiro D. Afonso entregava-se já à devassidão, que havia de formá-lo tão tristemente celebre como rei e como marido. A rainha regente D. Luísa de Gusmão acolheu o com entusiasmo, como o teria acolhido o falecido monarca. Mas. vendo então que o sonhado império do Maranhão não podia facilmente constituir-se, desistiu de se ocupar de missões e lançou se de corpo e alma na politica do seu país, então bastante agitada.
Por esse tempo terminava a menoridade de D. Afonso VI, e terminava expulsando a rainha da corte os Contis, indignos validos de seu filho. O P. António Vieira foi em todo este assunto o braço direito da rainha regente, e tanto confiava no seu valimento ou tão pouco se temia do moço rei, que não hesitou, por indicação da rainha mãe, em ler-lhe uma severa alocução no acto em que ele tomava posse do governo. O P. António Vieira, porém, não contava com o ministro de D. Afonso VI, o conde de Castelo Melhor, que em breve se assenhoreou do poder, e não consentiu que se tomassem com o soberano que representava, as liberdades que o P. António Vieira entendera dever tomar. A primeira coisa, que fez, foi desterrá-lo para o Porto, em 1662; e depois para Coimbra, em 1663, quando o padre lá imaginava que seria desterrado para o Brasil ou para Angola. Este procedimento do ministro lançou Vieira completamente na oposição, sendo ele um dos que mais trabalharam para que triunfasse a conspiração urdida pelo infante D. Pedro contra o rei seu irmão. Enquanto, porém. não chegava esse triunfo, o P. António Vieira viu-se desamparado do valimento do governo, e esse desamparo em que se encontrou, deu largas aos seus inimigos que o não pouparam Denunciado à inquisição de Coimbra em 1664, foi preso em 1665; e o Santo Tribunal lhe intentou um processo, que terminaria desastrosamente para ele, se não fosse a sua imensa popularidade. O P. António Vieira havia muito que incorrera nos ódios da Inquisição; as suas opiniões bem conhecidas a respeito dos cristãos novos, o seu trato com os hereges da Holanda não o tinham posto em cheiro de santidade perante o Santo Ofício Umas tendências extravagantes da sua potente imaginação e do seu subtilíssimo espírito, que se comprazia em adivinhações, necromancias, explicações proféticas das escrituras, agravaram ainda a sua situação. Os livros que serviram de base ao processo, foram o Quinto Império e a Clavis Prophetarum, e o P. António Vieira, longe de confessar o erro e de pedir que lho desculpassem, quis à viva força defender o seu livro, as suas explicações e o seu sebastianismo, porque António Vieira era sebastianista também, e foi um dos grandes propagandistas das trovas do. Bandarra. Durou largo tempo o processo, porque a Inquisição não se dava por satisfeita e impunha que reconhecesse os seus erros, a que o padre jesuíta se recusou, e talvez se não salvasse da fogueira, se a Companhia o abandonasse à sua sorte, e o papa Alexandre VII não interviesse a recomendar-lhe que se retractasse. A sentença do terrível tribunal foi proferida a 23 de Dezembro de 1667. Condenando Vieira a perder a voz activa e passiva, proibindo-lhe a predica, e ordenando lhe que se recolhesse a um colégio de noviços, ele, consumado teólogo; um homem de espírito impressionável poderia ter caído fulminado ao ouvir ler a infamante sentença; ele, não; ouviu-a de pé e imóvel durante duas horas com o olhar fito num crucifixo do tribunal, e isto depois de 27 meses de cárcere incomunicável. Triunfou, por fim, a revolução palaciana que tirou a D. Afonso VI a coroa e a mulher, mas Vieira não encontrou no príncipe D. Pedro o favor e o valimento que esperava.
A pena a que havia sido condenado foi lhe primeiramente comutada pela Inquisição em 6 meses de reclusão, e depois completamente perdoada, em 1668, mas não ficou satisfeito, e vendo que continuaria a pesar sobre ele a influência da Inquisição, entendeu que devia sair de Lisboa. A pretexto de que ia tratar da canonização de 40 santos da Companhia, partiu para Roma, mas o seu fim único era conseguir que o papa anulasse a sentença. Em Roma foi recebido pelos jesuítas com as máximas honras e as maiores distinções. Pregou alguns dos seus mais admiráveis sermões na igreja portuguesa, e como muitas personagens dos mais notáveis em Roma lamentavam que tão notável orador pregasse numa língua que nem todos entendiam, António Vieira, depois de se habilitar convenientemente, pregou em italiano. Era uma empresa difícil, por pregar em língua estranha, sobretudo quando um dos principais méritos do orador era a vernaculidade incomparável da sua linguagem. Pois foi extraordinário o seu triunfo, e uma das pessoas que mais se deixaram cativar pelo talento assombroso do jesuíta português, foi a rainha abdicatária da Suécia, Cristina, que residia em Roma, depois de se ter convertido à fé católica, e que instou muito com o P. António Vieira, para que ele aceitasse o lugar de seu confessor. Vieira escusou-se, muito lisonjeado com o convite, mas da que não podia consolar-se, era de não continuar a figurar na politica do seu país, e tanto mais que o papa Clemente X o havia isentado da jurisdição do Santo Ofício Por muitas vezes solicitou dos seus amigos de Lisboa, que alcançassem do regente D. Pedro que o incumbisse de alguma missão diplomática, mas tudo foi inútil. D. Pedro, sem que se saiba porquê, nunca se mostrou afeiçoado ao P. António Vieira, apesar do ter trabalhado dedicadamente em seu favor, e o padre vingava-se daquela ingratidão, increpando-o indirectamente num sermão de Santo António. Depois voltou-se para a rainha de Inglaterra, D. Catarina, que sempre lhe fora muito afeiçoada, mas D. Catarina estava indignadíssima por causa da revolução do palácio que destronara D. Afonso VI, seu irmão, e portanto não podia simpatizar com o papel que o P. António Vieira desempenhara em toda aquela intriga.
Em 1674 regressou a Portugal, depois de ter recebido em Roma as mais lisonjeiras manifestações de apreço e de entusiasmo. No seu regresso foi incumbido de tratar em Florença o casamento do herdeiro do grão-ducado de Toscana com a princesa herdeira de Portugal, negócio em que não foi feliz. Passou ainda 5 anos em Portugal, conservando e ampliando cada vez mais a sua reputação de orador sagrado, mas sem tornar a representar na política o papel brilhante que tanto ambicionava Resolveu se então a partir para a Baía, mas demorou-se ainda dois anos em Lisboa, depois de ter tomado esta resolução, por lhe custar muito a arrancar-se da pátria, e também a perder a esperança de voltar a figurar na política. Embarcou, finalmente, para a Baía, despeitado e desiludido, a 27 de Janeiro de 1681, e recolheu-se à quinta do Tanque, na convivência do seu inseparável companheiro o P. José Soares, que o incitava à compilação completa de todos os seus sermões e escritos morais.
Contava já 73 anos de idade, e parecia que devia estar cansado da vida agitadíssima que levara, mas é certo que, apesar dos achaques de que frequentemente se queixava, parecia conservar-se em pleno vigor e em pleno viço da mocidade correspondendo-se com um grande numero de altas personagens da corte portuguesa, e intervindo em todos os manejos políticos da terra em que vivia. Era velho costume, que dificilmente conseguiriam desarreigar-lhe do espírito. Demais era seu irmão Bernardo Vieira Ravasco secretário do governo da Baía, e isso naturalmente o incitava a ocupar-se da política. Fazia mal, contudo, sabendo que não podia contar com o regente D. Pedro como contara com D. João IV, tanto mais que o governador da Baía, que chegara pouco tempo antes de Vieira, era António de Sousa de Meneses, conhecido pela alcunha de Braço de prata, homem brutal e violento, que não hesitava doente da glória do eminente orador. Deu-se na Baía um triste caso, que foi o assassínio dum funcionário português por um seu inimigo António de Brito, que era muito parcial de Bernardo Vieira Ravasco, e muito protegido pelo P. António Vieira. Resultou deste incidente irritar-se o governador muito seriamente, e acusar abertamente Bernardo Vieira Ravasco de incitador do crime, e o P. António Vieira de seu cúmplice. 0 padre teve com o governador uma entrevista violenta. Sucedia que na Baía todos estavam a favor do secretário e do jesuíta seu irmão, mas em Lisboa não sucedia o mesmo, onde Bernardo Vieira Ravasco foi inclusivamente pronunciado. Partiu para Lisboa o filho do secretário Gonçalo Vieira Ravasco, afim de solicitar justiça do rei, ou antes do regente. Logo o recebeu D. Pedro, e disse-lhe em formais palavras e sem rodeios, que estava muito pouco satisfeito com seu tio, porque este lhe descompusera o seu governador. 0 P. António Vieira, quando soube o que o rei dissera, teve uma síncope, e depois ficou doente. Andava tão habituado ao favor da corte, e em tão elevado apreço tinha o valimento dos reis que não se podia conformar com a ideia de ter perdido as boas graças do soberano. Escreveu queixoso a todos os seus amigos da corte, lamentando ser tão mal tratado por um soberano, a quem prestara tantos serviços, antes dele subir ao trono, e que tanto auxiliara nesse empenho. Mostrou-se mesmo amargamente ressentido, mas era tão insensivelmente cortesão, que chegando à Baía a notícia da morte da rainha que fora mulher dos dois irmãos, e tendo sido convidado para pregar o sermão das exéquias, anuiu imediatamente. 0 processo em que o P. António Vieira fora envolvido com seu irmão, protelou-se até 1687, concluindo-se pela falta de base para pronuncia da qualquer deles e no ao. no seguinte a Companhia de Jesus o nomeou visitador da província do Brasil, cargo em que tinha de despender uma energia superior às suas forças, muito enfraquecidas pela velhice. Teve então de abandonar a sua quinta do Tanque, e recolher-se ao colégio da ordem da cidade. Ainda assim exerceu dois anos, segundo o costume, esse cargo, até que já quase no túmulo; sofreu uma última indignidade. Reunindo-se a congregação para se eleger um dos padres que devia ir como procurador a Rema, foi acusado o padre Vieira de ter andado solicitando votos. Deram-lhe como provado o crime e o superior do colégio não hesitou em repreender o grande homem, o venerando velho na presença de todos. Apelou para Roma de tal decisão o P. António Vieira, Roma deu-lhe razão, mas quando chegou a resolução final, que dava planíssima satisfação ao grande homem ultrajado, já ele não existia. 0 P. António Vieira morreu com perto de 90 anhos. Tanto na Baía como em Lisboa fizeram lhe pomposas exéquias.
Os sermões de Vieira publicaram-se ainda em sua vida, muitos deles soltos, até que principiou a formar se a colecção em 1679 em que saiu o 1.º volume. 0 2.º publicou-se em 1682, o 3.º em 1683, o 4.º em 1685, o 5.º em 1689, o 6.º em 1690, o 7.º em 1692; o 8.º que compreende o Xavier Dormindo e o Xavier acordado, em 1694; o 9.º, que assim depois foi classificado, mas que se publicara à parte como a 1.ª parte da colecção de sermões do Rosário, imprimiu-se em 1686, e o 10.º que era a segunda parte da mesma colecção, em 1688, o 11.º em 1696. Depois seguiram póstumos em 1699 o 12.º; o 13.º saiu em 1690, mas com o título de Palavra de Deus empenhada e desempenhada em dois sermões; o 14.º em 1710, o 15.º em 1748, mas saiu ao mesmo tempo como 2.º volume das Vozes saudosas da eloquencia do padre Antonio Vieira, cujo 1.º tomo saíra em 1736. Ainda em 1754 apareceu um volume com 12 sermões de Vieira, pregados todos em louvor de Santo António, e que se dá como tomo XVI da colecção. Estes sermões foram muitas vezes reimpressos, mas sem se lhes dar o carácter de edição nova, reimprimindo-se, sem se alterar a data dos volumes, que iam escasseando já muito no mercado. Em 1852 saíram 6 tomos de Sermões selectos do padre António Vieira, e mais tarde, fez-se também outra edição de sermões escolhidos do P. António Vieira com o título de 0 Chrysostomo portuguez. A Historia do futuro foi publicada em 1718, e reimpressa em 1755. Francisco Luís Ameno publicou em 1718 um volume com o título Voz sagrada, politica, rhetorica e metrica, suplemento às Vozes saudosas, que compreende muitas obras miúdas Em 1745 publicou-se uma Rhetorica sagrada ou Arte de prégar, que se atribui ao P. Vieira, mas que parece não ter autenticidade. Em 1746 uma Carta apologetica escrita em castelhano pelo P. António Vieira deu-lhe o editor o título de Echo das vozes saudosas. Das Cartas publicaram-se pela primeira vez em 1735 dois volumes, saindo outro em 1746. Publicaram-se em 1827 algumas cartas de António Vieira a Duarte Ribeiro de Macedo, trazendo no fim o célebre papel que Vieira compôs por ordem da rainha D Luísa de Gusmão, para ser lido a D. Afonso VI
No Correio Brasiliense e na Revista trimensal do Instituto saíram vários inéditos de Vieira, tais como: Memoria escripta em nome dos rusticos habitadores da serra da Estrella a el‑rei D. Pedro II, quando se tratou de estabelecer um novo tributo, uma Carta a el rei ácêrca das missões do Brazil, a Annua da missão dos Mares Verdes. Em 1652 saiu a Arte de furtar, que por muito tempo se lhe atribuiu, mas que evidentemente parece não ser dele; julga-se ser obra de Tomé Pinheiro da Veiga, falecido em 1656; há uma edição em 1744 Também lhe é atribuído o livro: Noticias reconditas ácérca do modo de proceder a Inquisição de Portugal com os seus presos. Em 1851 publicaram-se em Lisboa as obras completas do P. António Vieira, em que foi incluída a Arte de furtar. Um discurso feito por Vieira em italiano em Roma sobre as lágrimas de Heraclito saiu impresso em Nápoles. Foi traduzido em espanhol, e impresso nesta língua em Valência e em Barcelona, e traduzido em português pelo conde da Ericeira, e anda incluído nos volumes dos Sermões. Algumas coisas ficaram manuscritas, sendo a principal a Clavis prophetarum, mas muitos dos papeis políticos, versos medíocres em português e espanhol, comentários do Bandarra, defesa das suas obras incriminadas pela Inquisição, tem saído depois ou em diversos jornais, ou nalgumas colecções publicadas depois de sair o 1.º volume da Bibliotheca Lusitana, de Barbosa Machado. Muitas das obras do P. António Vieira foram traduzidas: 5 volumes dos sermões apareceram em Colónia, vertidos em latim pelos monges dessa cidade em 1707. 0 Xavier dormindo e Xavier acordado foi traduzido em latim pelo P. Leopoldo Fuen e impresso em 1701, e em italiano pelo P. Bonucci, saindo impresso em Veneza em 1712. Vieira deu o título das Cinco Pedras de David a uma série dos sermões que ele proferira em Roma em italiano. Saíram impressos em 1676. António Vieira traduziu os depois em espanhol e nesse mesmo ano se imprimiram, reimprimindo-se na mesma língua em 1678. Depois foram traduzidos em português pelo conde da Ericeira, e incluídos num dos volumes dos sermões do padre. 0 sermão panegírico da rainha D. Maria Francisca, pregado por ele e impresso avulso em Lisboa, em 1668, foi traduzido em francês pelo P. Verjus e impresso em Paris, traduzido em italiano, impresso em Roma, e publicado em Saragoça, parece que em espanhol. 0 sermão que Vieira pregou em Roma em louvor de Santo Stanislau Kotki foi traduzido em latim pelo P. Rosch e saiu em Cracóvia, e traduzido em italiano e impresso em Roma; o sermão das Chagas de S. Francisco foi traduzido em italiano e espanhol. Os sermões de Quaresma traduziu-os em italiano o P. Luís Vicente Mamiani e publicaram-se em volume; na mesma língua foram traduzidos e coordenados em volume pelo P. Annibal Adami vários sermões panegíricos do orador português. Em espanhol foram traduzidos todos os sermões do P. António Vieira, e tiveram muitas edições. A Historia do Futuro também se traduziu várias vezes em espanhol. Publicou-se há talvez perto de 40 anos, uma tradução francesa de alguns sermões mais notáveis de Viera. Julga-se que foi essa tradução, que serviu de base a uma conferência que acerca de Vieira fez em Paris, Mr. Méziéres da Academia Francesa. 0 P. André de Barros escreveu um notável estudo sobre o grande orador, que publicou em Lisboa, 1746, muito mais tarde reimpresso na Baía em 1837. Há o Discurso historico e critico sobre as obras de Vieira, escrito pelo cardeal Saraiva (D. Francisco Alexandre Lobo), impresso em Coimbra em 1823; a sua biografia escrita em apurada crítica pelo brasileiro João Francisco Lisboa.


Transcrito por Manuel Amaral


«Sermão de Santo António e outros sermões» - Padre António Vieira

Sermão de Santo Antonio
Pe. Antonio Vieira

Pregado em S. Luís do Maranhão, três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino

Vos estis sal terrae. S. Mateus, V, l3.

I

Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!

Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus. «Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil para que seja pisado de todos.» Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.

Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António, que hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou.

Pregava Santo António em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava e eles ouviam.

Se a Igreja quer que preguemos de Santo António sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: É muito bom texto para os outros santos doutores; mas para Santo António vem-lhe muito curto. Os outros santos doutores da Igreja foram sal da terra; Santo António foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento que, nas festas dos santos, é melhor pregar como eles, que pregar deles. Quanto mais que o são da minha doutrina, qualquer que ele seja tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em Arimino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele, vós o sabeis e eu por vós o sinto.

Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina maris: «Senhora do mar»; e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.

II

Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa mão falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins.

Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo António, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar. Assim o diz o grande Doutor da Igreja S. Basílio: Non carpere solum, reprehendereque possumus pisces, sed sunt in illis, et quae prosequenda sunt imitatione: «Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender nos peixes, senão também que imitar e louvar.» Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede de pescar, Sagenae missae in mare, diz que os pescadores «recolheram os peixes bons e lançaram fora os maus»: Elegerunt bonos in vasa, malos autem foras miserunt. E onde há bons e maus, há que louvar e que repreender. Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.

Começando pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer que entre todas as criaturas viventes e sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus criou. A vós criou primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos animais da terra e a vós primeiro que ao mesmo homem. Ao homem deu Deus a monarquia e o domínio de todos os animais dos três elementos, e nas provisões em que o honrou com estes poderes, os primeiros nomeados foram os peixes: Ut praesit piscibus maris et volatilibus caeli, et bestiis, universaeque terrae. Entre todos os animais do Mundo, os peixes são os mais e os peixes os maiores. Que comparação têm em número as espécies das aves e as dos animais terrestres com as dos peixes? Que comparação na grandeza o elefante com a baleia? Por isso Moisés, cronista da criação, calando os nomes de todos os animais, só a ela nomeou pelo seu: Creavit Deus cete grandia. E os três músicos da fornalha da Babilónia o cantaram também como singular entre todos: Benedicite, cete et omnia quae moventur in aquis, Domino. Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó peixes; mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito.

Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as que só podem dar o verdadeiro louvor, a primeira que se me oferece aos olhos hoje, é aquela obediência com que, chamados, acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu servo António. Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes e grande afronta e confusão para os homens! Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do Mundo, se pudessem, porque lhes repreendia seus vícios, porque lhes não queria falar à vontade e condescender com seus erros, e no mesmo tempo os peixes em inumerável concurso acudindo à sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando com silêncio e com sinais de admiração e assenso (como se tiveram entendimento) o que não entendiam. Quem olhasse neste passo para o mar e para a terra, e visse na terra os homens tão furiosos e obstinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de dizer? Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras. Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão.

Muito louvor mereceis, peixes, por este respeito e devoção que tivestes aos pregadores da palavra de Deus, e tanto mais quanto não foi só esta a vez em que assim o fizestes. Ia Jonas, pregador do mesmo Deus, embarcado em um navio, quando se levantou aquela grande tempestade; e como o trataram os homens, como o trataram os peixes? Os homens lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes, e o peixe que o comeu, levou-o às praias de Nínive, para que lá pregasse e salvasse aqueles homens. É possível que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros da salvação?! Vede, peixes, e não vos venha vanglória, quanto melhores sois que os homens. Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra.

Mas porque nestas duas acções teve maior parte a omnipotência que a natureza (como também em todas as milagrosas que obram os homens) passo às virtudes naturais e próprias vossas. Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais, se não domam nem domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem connosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os autores comummente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes; faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas a dentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quero lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes memória.

No tempo de Noé sucedeu o dilúvio que cobriu e alagou o Mundo, e de todos os animais quais livraram melhor? Dos leões escaparam dois, leão e leoa, e assim dos outros animais da terra; das águias escaparam duas, fêmea e macho, e assim das outras aves. E dos peixes? Todos escaparam, antes não só escaparam todos, mas ficaram muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois se morreram naquele universal castigo todos os animais da terra e todas as aves, porque mão morreram também os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio: porque os outros animais, como mais domésticos ou mais vizinhos, tinham mais comunicação com os homens, os peixes viviam longe e retirados deles. Facilmente pudera Deus fazer que as águas fossem venenosas e matassem todos os peixes, assim como afogaram todos os outros animais. Bem o experimentais na força daquelas ervas com que, infeccionados os poços e lagos, a mesma água vos mata; mas como o dilúvio era um castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, e ao Mundo pelos pecados dos homens, foi altíssima providência da divina Justiça que nele houvesse esta diversidade ou distinção, para que o mesmo Mundo visse que da companhia dos homens lhe viera todo o mal; e que por isso os animais que viviam mais perto deles, foram também castigados e os que andavam longe ficaram livres.

Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande filósofo qual era a melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe. Se isto vos pregou também Santo António – e foi este um dos benefícios de que vos exortou a dar graças ao Criador – bem vos pudera alegar consigo, que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens. Para fugir dos homens deixou a casa de seus pais e se recolheu a uma religião, onde professasse perpétua clausura. E porque nem aqui o deixavam os que ele tinha deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal. Para fugir e se esconder dos homens mudou o hábito, mudou o nome, e até a si mesmo se mudou, ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota, com que não fosse conhecido nem buscado, antes deixado de todos, como lhe sucedeu com seus próprios irmãos no capítulo geral de Assis. De ali se retirou a fazer vida solitária em um ermo, do qual nunca saíra, se Deus como por força o não manifestara e por fim acabou a vida em outro deserto, tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.

III

Este é, peixes, em comum o natural que em todos vós louvo, e a felicidade de que vos dou o parabém, não sem inveja. Descendo ao particular, infinita matéria fora se houvera de discorrer pelas virtudes de que o Autor da natureza a dotou e fez admirável em cada um de vós. De alguns somente farei menção. E o que tem o primeiro lugar entre todos, como tão celebrado na Escritura, é aquele santo peixe de Tobias a quem o texto sagrado não dá outro nome que de grande, como verdadeiramente o foi nas virtudes interiores, em que só consiste a verdadeira grandeza. Ia Tobias caminhando com o anjo S. Rafael, que o acompanhava, e descendo a lavar os pés do pó do caminho nas margens de um rio, eis que o investe um grande peixe com a boca aberta em acção de que o queria tragar. Gritou Tobias assombrado, mas o anjo lhe disse que pegasse no peixe pela barbatana e o arrastasse para terra; que o abrisse e lhe tirasse as entranhas e as guardasse, porque lhe haviam de servir muito. Fê-lo assim Tobias, e perguntando que virtude tinham as entranhas daquele peixe que lhe mandara guardar, respondeu o anjo que o fel era bom para sarar da cegueira e o coração para lançar fora os demónios: Cordis eius particulam, si super carbones ponas, fumus eius extricat omne genus daemoniorum: et fel valet ad ungendos oculos, in quibus fuerit albugo, et sanabuntur. Assim o disse o anjo, e assim o mostrou logo a experiência, porque, sendo o pai de Tobias cego, aplicando-lhe o filho aos olhos um pequeno do fel, cobrou inteiramente a vista; e tendo um demónio, chamado Asmodeu, morto sete maridos a Sara, casou com ela o mesmo Tobias; e queimando na casa parte do coração, fugiu dali o Demónio e nunca mais tornou. De sorte que o fel daquele peixe tirou a cegueira a Tobias, o velho, e lançou os demónios de casa a Tobias, o moço. Um peixe de tão bom coração e de tão proveitoso fel, quem o não louvará mais? Certo que se a este peixe o vestiram de burel e o ataram com uma corda, parecia um retrato marítimo de Santo António.

Abria Santo António a boca contra os hereges, e enviava-se a eles, levado do fervor e zelo da fé e glória divina. E eles que faziam? Gritavam como Tobias e assombravam-se com aquele homem e cuidavam que os queria comer. Ah homens, se houvesse um anjo que vos revelasse qual é o coração desse homem e esse fel que tanto vos amarga, quão proveitoso e quão necessário vos é! Se vós lhe abrísseis esse peito e lhe vísseis as entranhas, como é certo que havíeis de achar e conhecer claramente nelas que só duas cousas pretende de vós, e convosco: uma é alumiar e curar vossas cegueiras, e outra lançar-vos os demónios fora de casa.

Pois a quem vos quer tirar as cegueiras, a quem vos quer livrar dos demónios perseguis vós?! Só uma diferença havia entre Santo António e aquele peixe: que o peixe abriu a boca contra quem se lavava, e Santo António abria a sua contra os que se não queriam lavar.

Ah moradores do Maranhão, quanto eu vos pudera agora dizer neste caso! Abri, abri estas entranhas; vede, vede este coração. Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não vos prego a vós, prego aos peixes.

Passando dos da Escritura aos da história natural, quem haverá que não louve e admire muito a virtude tão celebrada da rémora? No dia de um santo menor, os peixes menores devem preferir aos outros. Quem haverá, digo, que não admire a virtude daquele peixezinho tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder, que não sendo maior de um palmo, se se pega ao leme de uma nau da Índia, apesar das velas e dos ventos, e de seu próprio peso e grandeza, a prende e amarra mais que as mesmas âncoras, sem se poder mover, nem ir por diante? Oh se houvera uma rémora na terra, que tivesse tanta força como a do mar, que menos perigos haveria na vida e que menos naufrágios no Mundo!

Se alguma rémora houve na terra, foi a língua de Santo António, na qual, como na rémora, se verifica o verso de São Gregório Nazianzeno: Lingua quidem parva est, sed viribus omnia vincit. O Apóstolo Santiago, naquela sua eloquentíssima Epístola, compara a língua ao leme da nau e ao freio do cavalo. Uma e outra comparação juntas declaram maravilhosamente a virtude da rémora, a qual, pegada ao leme da nau, é freio da nau e leme do leme. E tal foi a virtude e força da língua de Santo António. O leme da natureza humana é o alvedrio, o piloto é a razão: mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos precipitados do alvedrio? Neste leme, porém, tão desobediente e rebelde, mostrou a língua de António quanta força tinha, como rémora, para domar a fúria das paixões humanas. Quantos, correndo fortuna na nau Soberba, com as velas inchadas do vento e da mesma soberba (que também é vento), se iam desfazer nos baixos, que já rebentavam por proa, se a língua de António, como rémora, não tivesse mão no leme, até que as velas se amainassem, como mandava a razão, e cessasse a tempestade de fora e a de dentro? Quantos, embarcados na nau Vingança, com a artilharia abocada e os botafogos acesos, corriam infunados a dar-se batalha, onde se queimariam ou deitariam a pique se a rémora da língua de António lhes dão detivesse a fúria, até que, composta a ira e ódio, com bandeiras de paz se salvassem amigavelmente? Quantos, navegando na nau Cobiça, sobrecarregada até às gáveas e aberta com o peso por todas as costuras, incapaz de fugir, nem se defender, dariam nas mãos dos corsários com perda do que levavam e do que iam buscar, se a língua de António os não fizesse parar, como rémora, até que, aliviados da carga injusta, escapassem do perigo e tomassem porto? Quantos, na nau Sensualidade, que sempre navega com cerração, sem sol de dia, nem estrelas de noite, enganados do canto das sereias e deixando-se levar da corrente, se iriam perder cegamente, ou em Sila, ou em Caribdes, onde não aparecesse navio nem navegante, se a rémora da língua de António os não contivesse, até que esclarecesse a luz e se pusessem em vista.

Esta é a língua, peixes, do vosso grande pregador, que também foi rémora vossa, enquanto o ouvistes; e porque agora está muda (posto que ainda se conserva inteira) se vêem e choram na terra tantos naufrágios.

Mas para que da admiração de uma tão grande virtude vossa, passemos ao louvor ou inveja de outra não menor, admirável é igualmente a qualidade daquele outro peixezinho, a que os latinos chamaram torpedo. Ambos estes peixes conhecemos cá mais de fama que de vista; mas isto têm as virtudes grandes, que quanto são maiores, mais se escondem. Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a bóia sobre a água, e em lhe picando na isca o torpedo começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior, mais breve e mais admirável efeito? De maneira que, num momento, passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do pescador.

Com muita razão disse que este vosso louvor o havia de referir com inveja. Quem dera aos pescadores do nosso elemento, ou quem lhes pusera esta qualidade tremente, em tudo o que pescam na terra! Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que me espanta é que pesquem tanto e que tremam tão pouco. Tanto pescar e tão pouco tremer!

Pudera-se fazer problema; onde há mais pescadores e mais modos e traças de pescar, se no mar ou na terra? E é certo que na terra. Não quero discorrer por eles, ainda que fora grande consolação para os peixes; baste fazer a comparação com a cana, pois é o instrumento do nosso caso. No mar, pescam as canas, na terra, as varas, (e tanta sorte de varas); pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões e até os ceptros pescam, e pescam mais que todos, porque pescam cidades e reinos inteiros. Pois é possível que, pescando os homens cousas de tanto peso, lhes não trema a mão e o braço?! Se eu pregara aos homens e tivera a língua de Santo António, eu os fizera tremer.

Vinte e dois pescadores destes se acharam acaso a um sermão de Santo António, e às palavras do Santo os fizeram tremer a todos de sorte que todos, tremendo, se lançaram a seus pés; todos, tremendo, confessaram seus furtos; todos, tremendo, restituíram o que podiam (que isto é o que faz tremer mais neste pecado que nos outros); todos enfim mudaram de vida e de ofício e se emendaram.

Quero acabar este discurso dos louvores e virtudes dos peixes com um, que não sei se foi ouvinte de Santo António e aprendeu dele a pregar. A verdade é que me pregou a mim, e se eu fora outro, também me convertera. Navegando de aqui para o Pará (que é bem não fiquem de fora os peixes da nossa costa), vi correr pela tona da água de quando em quando, a saltos, um cardume de peixinhos que não conhecia; e como me dissessem que os Portugueses lhe chamavam quatro-olhos, quis averiguar ocularmente a razão deste nome, e achei que verdadeiramente têm quatro olhos, em tudo cabais e perfeitos. Dá graças a Deus, lhe disse, e louva a liberalidade de sua divina providência para contigo; pois às águias, que são os linces do ar, deu somente dois olhos, e aos linces, que são as águias da terra, também dois; e a ti, peixezinho, quatro.

Mais me admirei ainda, considerando nesta maravilha a circunstância do lugar. Tantos instrumentos de vista a um bichinho do mar, nas praias daquelas mesmas terras vastíssimas, onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos! Oh quão altas e incompreensíveis são as razões de Deus, e quão profundo o abismo de seus juízos!

Filosofando, pois, sobre a causa natural desta providência, notei que aqueles quatro olhos estão lançados um pouco fora do lugar ordinário, e cada par deles, unidos como os dois vidros de um relógio de areia, em tal forma que os da parte superior olham direitamente para cima, e os da parte inferior direitamente para baixo. E a razão desta nova arquitectura, é porque estes peixinhos, que sempre andam na superfície da água, não só são perseguidos dos outros peixes maiores do mar, senão também de grande quantidade de aves marítimas, que vivem naquelas praias; e como têm inimigos no mar e inimigos no ar, dobrou-lhes a natureza as sentinelas e deu-lhes dois alhos, que direitamente olhassem para cima, para se vigiarem das aves, e outros dois que direitamente olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes.

Oh que bem informara estes quatro olhos uma alma racional, e que bem empregada fora neles, melhor que em muitos homens! Esta é a pregação que me fez aquele peixezinho, ensinando-me que, se tenho fé e uso da razão, só devo olhar direitamente para cima, e só direitamente para baixo: para cima, considerando que há Céu, e para baixo, lembrando-me que há Inferno. Não me alegou para isso passo da Escritura; mas então me ensinou o que quis dizer David em um, que eu não entendia: Averte oculos meos, ne videant vanitatem. «Voltai-me, Senhor, os olhos, para que não vejam a vaidade.»

Pois David não podia voltar os seus olhos para onde quisesse?! Do modo que ele queria, não. Ele queria voltados os seus olhos, de modo que não vissem a vaidade, e isto não o podia fazer neste Mundo, para qualquer parte que voltasse os olhos, porque neste Mundo «tudo é vaidade»: Vanitas vanitatum et omnia vanitas. Logo, para não verem os olhos de David a vaidade, havia-lhos de voltar Deus de modo que só vissem e olhassem para o outro Mundo em ambos seus hemisférios; ou para o de cima, olhando direitamente só para o Céu, ou para o de baixo, olhando direitamente só para o Inferno. E esta é a mercê que pedia a Deus aquele grande profeta, e esta a doutrina que me pregou aquele peixezinho tão pequeno.

Mas ainda que o Céu e o Inferno se não fez para vós, irmãos peixes, acabo, e dou fim a vossos louvores, com vos dar as graças do muito que ajudais a ir ao Céu, e não ao Inferno, os que se sustentam de vós. Vós sois os que sustentais as Cartuxas e os Buçacos, e todas as santas famílias, que professam mais rigorosa austeridade; vós os que a todos os verdadeiros cristãos ajudais a levar a penitência das quaresmas; vós aqueles com que o mesmo Cristo festejou a Páscoa as duas vezes que comeu com seus discípulos depois de ressuscitado. Prezem-se as aves e os animais terrestres de fazer esplêndidos e custosos os banquetes dos ricos, e vós gloriai-vos de ser companheiros do jejum e da abstinência dos justos! Tendes todos quantos sois tanto parentesco e simpatia com a virtude, que, proibindo Deus no jejum a pior e mais grosseira carne, concede o melhor e mais delicado peixe. E posto que na semana só dois se chamam vossos, nenhum dia vos é vedado. Um só lugar vos deram os astrólogos entre os signos celestes, mas os que só de vós se mantêm na terra, são os que têm mais seguros os lugares do Céu. Enfim, sois criaturas daquele elemento, cuja fecundidade entre todos é própria do Espírito Santo: Spiritus Domini foecundabat aquas.

Deitou-vos Deus a bênção, que crescêsseis e multiplicásseis; e para que o Senhor vos confirme essa bênção, lembrai-vos de não faltar aos pobres com o seu remédio. Entendei que no sustento dos pobres tendes seguros os vossos aumentos. Tomai o exemplo nas irmãs sardinhas. Porque cuidais que as multiplica o Criador em número tão inumerável? Porque são sustento de pobres. Os solhos e os salmões são muito contados, porque servem à mesa dos reis e dos poderosos; mas o peixe que sustenta a fome dos pobres de Cristo, o mesmo Cristo os multiplica e aumenta. Aqueles dois peixes companheiros dos cinco pães do deserto, multiplicaram tanto, que deram de comer a cinco mil homens. Pois se peixes mortos, que sustentam os pobres, multiplicam tanto, quanto mais e melhor o farão os vivos! Crescei, peixes, crescei e multiplicai, e Deus vos confirme a sua bênção.

IV

Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.

Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.

Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job, quando dizia: Quare persequimini me, et carnibus meis saturamini? «Porque me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne?» Quereis ver um Job destes?

Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.

E para que vejais como estes comidos na terra são os pequenos, e pelos mesmos modos com que vós comeis no mar, ouvi a Deus queixando-se deste pecado: Nonne cognoscent omnes, qui operantur iniquitatem, qui devorunt plebem meam, ut cibum panis? «Cuidais, diz Deus, que não há-de vir tempo em que conheçam e paguem o seu merecido aqueles que cometem a maldade?» E que maldade é esta, à qual Deus singularmente chama maldade, como se não houvera outra no Mundo? E quem são aqueles que a cometem? A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os maiores, que comem os pequenos: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.

Nestas palavras, pelo que vos toca, importa, peixes, que advirtais muito outras tantas cousas, quantas são as mesmas palavras. Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant. Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos senão que devoram e engolem os povos inteiros: Qui devorant plebem meam. E de que modo os devoram e comem? Ut cibum panis: não como os outros comeres, senão como pão.

A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.

Parece-vos bem isto, peixes? Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não, e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os homens.

Se cuidais, porventura, que estas injustiças entre vós se toleram e passam sem castigo, enganais-vos. Assim como Deus as castiga nos homens, assim também por seu modo as castiga em vós. Os mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado, e quando menos ouviríeis murmurar aos passageiros nas canoas, e muito mais lamentar aos miseráveis remeiros delas, que os maiores que cá foram mandados, em vez de governar e aumentar o mesmo Estado, o destruíram; porque toda a fome que de lá traziam, a fartavam em comer e devorar os pequenos.
Assim foi; mas, se entre vós se acham acaso alguns dos que, seguindo a esteira dos navios, vão com eles a Portugal e tornam para os mares pátrios, bem ouviriam estes lá no Tejo que esses mesmos maiores que cá comiam os pequenos, quando lá chegam, acham outros maiores que os comam também a eles. Este é o estilo da divina justiça tão antigo e manifesto, que até os Gentios o conheceram e celebraram:

Vos quibus rector maris, atque terrae
Ius dedit magnum necis, atque vitae;
Ponite inflatos, tumidosque vultus;
Quidquid a vobis minor extimescit,
Maior hoc vobis dominus minatur.

Notai, peixes, aquela definição de Deus: Rector maris atque terrae: «Governador do mar e da terra»; para que não duvideis que o mesmo estilo que Deus guarda com homens na terra, observa também convosco no mar. Necessário é logo que olheis por vós e que não façais pouco caso da doutrina que vos deu o grande Doutor da Igreja Santo Ambrósio, quando, falando convosco, disse: Cave nedum alium insequeris, incidas in validiorem: «Guarde-se o peixe que persegue o mais fraco para o comer, não se ache na boca do mais forte», que o engula a ele. Nós o vemos aqui cada dia. Vai o xaréu correndo atrás do bagre, como o cão após a lebre, e não vê o cego que lhe vem nas costas o tubarão com quatro ordens de dentes, que o há-de engolir de um bocado. E o que com maior elegância vos disse também Santo Agostinho: Praedo minoris fit praeda maioris. Mas não bastam, peixes, estes exemplos para que acabe de se persuadir a vossa gula, que a mesma crueldade que usais com os pequenos tem já aparelhado o castigo na voracidade dos grandes?

Já que assim o experimentais com tanto dano vosso, importa que de aqui por diante sejais mais repúblicos e zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o apetite particular de cada um, para que não suceda que, assim como hoje vemos a muitos de vós tão diminuídos, vos venhais a consumir de todo. Não vos bastam tantos inimigos de fora e tantos perseguidores tão astutos e pertinazes, quantos são os pescadores, que nem de dia nem de noite deixam de vos pôr em cerco e fazer guerra por tantos modos?! Não vedes que contra vós se emalham e entralham as redes, contra vós se tecem as nassas, contra vós se torcem as linhas, contra vós se dobram e farpam os anzóis, contra vós as fisgas e os arpões? Não vedes que contra vós até as canas são lanças e as cortiças armas ofensivas? Não vos basta, pois, que tenhais tantos e tão armados inimigos de fora, senão que também vós de vossas portas a dentro o haveis de ser mais cruéis, perseguindo-vos com uma guerra mais que civil e comendo-vos uns aos outros? Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão perniciosa discórdia; e pois vos chamei e sois irmãos, lembrai-vos das obrigações deste nome. Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito amigos todos, grandes e pequenos, quando vos pregava Santo António? Pois continuai assim, e sereis felizes.

Dir-me-eis (como também dizem os homens) que não tendes outro modo de vos sustentar. E de que se sustentam entre vós muitos que não comem os outros? O mar é muito largo, muito fértil, muito abundante, e só com o que bota às praias pode sustentar grande parte dos que vivem dentro nele. Comerem-se uns animais aos outros é voracidade e sevícia, e não estatuto da natureza. Os da terra e do ar, que hoje se comem, no princípio do Mundo não se comiam, sendo assim conveniente e necessário para que as espécies se multiplicassem. O mesmo foi (ainda mais claramente) depois do dilúvio, porque, tendo escapado somente dois de cada espécie, mal se podiam conservar, se se comessem. E finalmente no tempo do mesmo dilúvio, em que todos viveram juntos dentro na arca, o lobo estava vendo o cordeiro, o gavião a perdiz, o leão o gamo, e cada um aqueles em que se costuma cevar; e se acaso lá tiveram essa tentação, todos lhe resistiram e se acomodaram com a ração do paiol comum que Noé lhes repartia. Pois se os animais dos outros elementos mais cálidos foram capazes desta temperança, porque o não serão os da água? Enfim, se eles em tantas ocasiões, pelo desejo natural da própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós também; ou fazei a virtude sem necessidade e será maior virtude.

Outra cousa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de vós é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que, assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida?

Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e porquê? Porque houve quem os engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por isco na ponta desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis. ou vermelho, que se chama de Cristo e de Santiago; e os homens, por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali, ou noutra ocasião ficou morto; e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros.

Por este exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição de hábitos.

Mas nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais ignoradamente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhes passou a era e não têm gasto; e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra: dá-lhes uma sacadela e dá-lhes outra, com que cada vez lhes sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que querem parecer, todos esfaimados aos trapos, e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano, e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas nem as baixelas, nem as jóias; pois em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano.

Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está que sim; nem vós o podeis negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de pano, quem tem obrigação de se vestir; vós, a quem Deus vestiu do pé até à cabeça, ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e doiradas, vestidos que nunca se rompem, nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as modas; não é maior ignorância e maior cegueira deixardes-vos enganar ou deixardes-vos tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano? Vede o vosso Santo António, que pouco o pode enganar o Mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cónego regrante; e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e foram sisudos.

V

Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui pela nossa costa: no mesmo dia em que cheguei a ela, ouvindo os roncadores e vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?! Se, com uma linha de coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada, tem pouca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer roncadores e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam. S. Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou contra um exército inteiro de soldados romanos; e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu vos prometo que havia de cortar mais orelhas que a de Malco. Contudo, que lhe sucedeu naquela mesma noite? Tinha roncado e barbateado Pedro que, se todos fraqueassem, só ele havia de ser constante até morrer se fosse necessário; e foi tanto pelo contrário, que só ele fraqueou mais que todos, e bastou a voz de uma mulherzinha para o fazer tremer e negar. Antes disso já tinha fraqueado na mesma hora em que prometeu tanto de si. Disse-lhe Cristo no horto que vigiasse, e vindo de aí a pouco a ver se o fazia, achou-o dormindo com tal descuido, que não só o acordou do sono, senão também do que tinha blasonado: Sic non potuisti una hora vigilare mecum? Vós, Pedro, sois o valente que havíeis de morrer por mim, «e não pudestes uma hora vigiar comigo»? Pouco há, tanto roncar, e agora tanto dormir? Mas assim sucedeu. O muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela. Pois que vos parece, irmãos roncadores? Se isto sucedeu ao maior pescador, que pode acontecer ao menor peixe? Medi-vos, e logo vereis quão pouco fundamento tendes de blasonar, nem roncar.

Se as baleias roncaram, tinha mais desculpa a sua arrogância na sua grandeza. Mas ainda nas mesmas baleias não seria essa arrogância segura. O que é a baleia entre os peixes, era o gigante Golias entre os homens. Se o rio Jordão e o mar de Tiberíades têm comunicação com o Oceano, como devem ter, pois dele manam todos, bem deveis de saber que este gigante era a ronca dos Filisteus. Quarenta dias contínuos esteve armado no campo, desafiando a todos os arraiais de Israel, sem haver quem se lhe atrevesse; e no cabo, que fim teve toda aquela arrogância? Bastou um pastorzinho com um cajado e uma funda, para dar com ele em terra. Os arrogantes e soberbos tomam-se com Deus; e quem se toma com Deus, sempre fica debaixo. Assim que, amigos roncadores, o verdadeiro conselho é calar e imitar a Santo António. Duas cousas há nos homens, que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder. Caifás roncava de saber: Vos nescitis quidquam. Pilatos roncava de poder: Nescis quia potestatem habeo? E ambos contra Cristo. Mas o fiel servo de Cristo, António, tendo tanto saber, como já vos disse, e tanto poder, como vós mesmos experimentastes, ninguém houve jamais que o ouvisse falar em saber ou poder, quanto mais blasonar disso. E porque tanto calou, por isso deu tamanho brado.

Nesta viagem, de que fiz menção, e em todas as que passei a Linha Equinocial, vi debaixo dela o que muitas vezes tinha visto e notado nos homens, e me admirou que se houvesse estendido esta ronha e pegado também aos peixes. Pegadores se chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade, porque sendo pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados. que jamais os desferram. De alguns animais de menos força e indústria se conta que vão seguindo de longe aos leões na caça, para se sustentarem do que a eles sobeja. O mesmo fazem estes pegadores, tão seguros ao perto como aqueles ao longe; porque o peixe grande não pode dobrar a cabeça, nem voltar a boca sobre os que traz às costas, e assim lhes sustenta o peso e mais a fome.

Este modo de vida, mais astuto que generoso, se acaso se passou e pegou de um elemento a outro, sem dúvida que o aprenderam os peixes do alto, depois que os nossos Portugueses o navegaram; porque não parte vice-rei ou governador para as Conquistas, que não vá rodeado de pegadores, os quais se arrimam a eles, para que cá lhes matem a fome, de que lá não tinham remédio. Os menos ignorantes, desenganados da experiência, despegam-se e buscam a vida por outra via; mas os que se deixam estar pegados à mercê e fortuna dos maiores, vem-lhes a suceder no fim o que aos pegadores do mar.

Rodeia a nau o tubarão nas calmarias da Linha com os seus pegadores às costas, tão cerzidos com a pele, que mais parecem remendos ou manchas naturais, que os hóspedes ou companheiros. Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro soldados, arremessa-se furiosamente à presa, engole tudo de um bocado, e fica preso. Corre meia companha a alá-lo acima, bate fortemente o convés com os últimos arrancos; enfim, morre o tubarão, e morrem com ele os pegadores.

Parece-me que estou ouvindo a S. Mateus, sem ser apóstolo pescador, descrevendo isto mesmo na terra. Morto Herodes, diz o Evangelista, apareceu o Anjo a José no Egipto, e disse-lhe que já se podia tornar para a pátria, porque «eram mortos todos aqueles que queriam tirar a vida ao Menino»: Defuncti sunt enim qui quaerebant animam Pueri. Os que queriam tirar a vida a Cristo menino, eram Herodes e todos os seus, toda a sua família, todos os seus aderentes, todos os que seguiam e pendiam da sua fortuna. Pois é possível que todos estes morressem juntamente com Herodes?! Sim: porque em morrendo o tubarão, morrem também com ele os pegadores: Defuncto Herode, defuncti sunt qui quaerebant animam Pueri.

Eis aqui, peixinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que escolhestes. Tomai o exemplo nos homens, pois eles o não tomam em vós, nem seguem, como deveram, o de Santo António.

Deus também tem os seus pegadores. Um destes era David, que dizia: Mihi autem adhaerere Deo bonum est. Peguem-se outros aos grandes da terra, que «eu só me quero pegar a Deus». Assim o fez também Santo António; e senão, olhai para o mesmo Santo, e vede como está pegado com Cristo e Cristo com ele. Verdadeiramente se pode duvidar qual dos dois é ali o pegador: e parece que é Cristo, porque o menor é sempre o que se pega ao maior, e o Senhor fez-se tão pequenino, para se pegar a António. Mas António também se fez menor, para se pegar mais a Deus. Daqui se segue, que todos os que se pegam a Deus, que é imortal, seguros estão de morrer como os outros pegadores. E tão seguros, que ainda no caso em que Deus se fez homem e morreu, só morreu para que não morressem todos os que se pegassem a ele: Si ego me quaeritis, sinite hos abire. «Se me buscais a mim, deixai ir a estes.» E posto que deste modo só se podem pegar os homens, e vós, meus peixezinhos, não, ao menos devereis imitar aos outros animais do ar e da terra, que quando se chegam aos grandes e se amparam do seu poder, não se pegam de tal sorte que morram juntamente com eles. Lá diz a Escritura daquela famosa árvore, em que era significado o grande Nabucodonosor, que todas as aves do céu descansavam sobre os seus ramos e todos os animais da terra se recolhiam à sua sombra, e uns e outros se sustentavam de seus frutos: mas também diz que, tanto que foi cortada esta árvore, as aves voaram e os outros animais fugiram. Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tal maneira pegados, que vos mateis por eles, nem morrais com eles.

Considerai, pegadores vivos, como morreram os outros que se pegaram àquele peixe grande, e porquê. O tubarão morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não comeram. Pode haver maior ignorância que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o tubarão porque comeu, matou-o a sua gula; mas que morra o pegador pelo que não comeu, é a maior desgraça que se pode imaginar! Não cuidei que também nos peixes havia pecado original. Nós os homens, fomos tão desgraçados, que outrem comeu e nós o pagamos. Toda a nossa morte teve princípio na gulodice de Adão e Eva; e que hajamos de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça! Mas nós lavamo-nos desta desgraça com uma pouca de água, e vós não vos podeis lavar da vossa ignorância com quanta água tem o mar.

Com os voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas e para as vossas escamas, e conhecereis que não sois aves, senão peixes, e ainda entre os peixes não dos melhores. Dir-me-eis, voador, que vos deu Deus maiores barbatanas que aos outros de vosso tamanho. Pois porque tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas?! Mas ainda mal, porque tantas vezes vos desengana o vosso castigo. Quisestes ser melhor que os outros peixes, e por isso sois mais mofino que todos. Aos outros peixes, do alto mata-os o anzol ou a fisga, a vós sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa presunção e o vosso capricho. Vai o navio navegando e o marinheiro dormindo, e o voador toca na vela ou na corda, e cai palpitando. Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca; ao voador mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o vento. Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e viver, que voar por cima das entenas e cair morto!

Grande ambição é que, sendo o mar tão imenso, lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro elemento mais largo. Mas vedes, peixes, o castigo da ambição. O voador fê-lo Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus que tenha os perigos de ave e mais os de peixe. Todas as velas para ele são redes, como peixe, e todas as cordas, laços, como ave. Vê, voador, como correu pela posta o teu castigo. Pouco há nadavas vivo no mar com as barbatanas, e agora jazes em um convés amortalhado nas asas. Não contente com ser peixe, quiseste ser ave, e já não és ave nem peixe; nem voar poderás já, nem nadar. A natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo. Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. Se o voador não quisera passar do segundo ao terceiro, não viera a parar no quarto. Bem seguro estava ele do fogo, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta das ondas, vieram-se-lhe a queimar as asas.

À vista deste exemplo, peixes, tomai todos na memória esta sentença: Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem. Quem pode nadar e quer voar, tempo virá em que não voe nem nade. Ouvi o caso de um voador da terra: Simão Mago, a quem a arte mágica, na qual era famosíssimo, deu o sobrenome, fingindo-se que ele era o verdadeiro filho de Deus, sinalou o dia em que aos olhos de toda Roma havia de subir ao Céu, e com efeito começou a voar mui alto; porém a oração de S. Pedro, que se achava presente, voou mais depressa que ele, e caindo lá de cima o mago, não quis Deus que morresse logo, senão que aos olhos também de todos quebrasse, como quebrou, os pés.

Não quero que repareis no castigo, se não no género dele Que caia Simão, está muito bem caído; que morra, também estaria muito bem morto, que o seu atrevimento e a sua arte diabólica o merecia. Mas que de uma queda tão alta não rebente, nem quebre a cabeça ou os braços, se não os pés?! Sim, diz S. Máximo, porque quem tem pés para andar e quer asas para voar, justo é que perca as asas e mais os pés. Elegantemente o Santo Padre: Ut qui paulo ante volare tentaverat, subito ambulare non posset; et qui pennas assumpserat, plantas amitteret. Se Simão tem pés e quer asas, pode andar e quer voar; pois quebrem-se-lhe as asas para que não voe, e também os pés, para que não ande. Eis aqui, voadores do mar, o que sucede aos da terra, para que cada um se contente com o seu elemento. Se o mar tomara exemplo nos rios, depois que Ícaro se afogou no Danúbio não haveria tantos Ícaros no Oceano.

Oh alma de António, que só vós tivestes asas e voastes sem perigo, porque soubestes voar para baixo e não para cima! Já S. João viu no Apocalipse aquela mulher cujo ornato gastou todas as luzes ao Firmamento, e diz que «lhe foram dadas duas grandes asas de águia»: Datae sunt mulieri alae duae aquilae magnae. E para quê? Ut volaret in desertum: «Para voar ao deserto.» Notável cousa, que não debalde lhe chamou o mesmo Profeta grande maravilha. Esta mulher estava no Céu: Signum magnum apparauit in caelo, mulier amicta sole. Pois se a mulher estava no Céu e o deserto na terra, como lhe dão asas para voar ao deserto? Porque há asas para subir e asas para descer. As asas para subir são muito perigosas, as asas para descer muito seguras; e tais foram as de Santo António. Deram-se à alma de Santo António duas asas de águia, que foi aquela duplicada sabedoria natural e sobrenatural tão sublime, como sabemos. E ele que fez? Não estendeu as asas para subir, encolheu-as para descer; e tão encolhidas que, sendo a Arca do Testamento, era reputado, como já vos disse, por leigo e sem ciência. Voadores do mar (não falo com os da terra), imitai o vosso santo pregador. Se vos parece que as vossas barbatanas vos podem servir de asas, não as estendais para subir, porque vos não suceda encontrar com alguma vela ou algum costado; encolhei-as para descer, ide-vos meter no fundo em alguma cova; e se aí estiverdes mais escondidos, estareis mais seguros.

Mas já que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão polvo, contra o qual têm suas queixas, e grandes, não menos que S. Basílio e Santo Ambrósio. O polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja latina e grega, que o dito polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no camaleão são gala, no polvo são malícia; as figuras, que em Proteu são fábula, no polvo são verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo: e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, vai passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas? Não fizera mais, porque não fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os braços fez o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras. O polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz, é a luz, para que não distinga as cores. Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor!

Oh que excesso tão afrontoso e tão indigno de um elemento tão puro, tão claro e tão cristalino como o da água, espelho natural não só da terra, senão do mesmo céu! Lá disse o Profeta por encarecimento, que «nas nuvens do ar até a água é escura»: Tenebrosa aqua in nubibus aeris. E disse nomeadamente nas nuvens do ar, para atribuir a escuridade ao outro elemento, e não à água; a qual em seu próprio elemento é sempre clara, diáfana e transparente, em que nada se pode ocultar, encobrir nem dissimular. E que neste mesmo elemento se crie, se conserve e se exercite com tanto dano do bem público um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente traidor!

Vejo, peixes, que pelo conhecimento que tendes das terras em que batem os vossas mares, me estais respondendo e convindo, que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais perniciosas traições. E sobre o mesmo sujeito que defendeis, também podereis aplicar aos semelhantes outra propriedade muito própria; mas pois vós a calais, eu também a calo. Com grande confusão, porém, vos confesso tudo, e muito mais do que dizeis, pois não o posso negar. Mas ponde os olhos em António, vosso pregador, e vereis nele o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou engano. E sabei também que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser português, não era necessário ser santo.

Tenho acabado, irmãos peixes, os vossos louvores e repreensões, e satisfeito, como vos prometi, às duas obrigações do sal, posto que do mar, e não da terra: Vos estis sal terrae. Só resta fazer-vos uma advertência muito necessária, para os que viveis nestes mares. Como eles são tão esparcelados e cheios de baixios, bem sabeis que se perdem e dão à costa muitos navios, com que se enriquece o mar e a terra se empobrece. Importa, pois, que advirtais, que nesta mesma riqueza tendes um grande perigo, porque todos os que se aproveitam dos bens dos naufragantes, ficam excomungados e malditos.

Esta pena de excomunhão, que é gravíssima, não se pôs a vós senão aos homens, mas tem mostrado Deus por muitas vezes, que quando os animais cometem materialmente o que é proibido por esta lei, também eles incorrem, por seu modo, nas penas dela, e no mesmo ponto começam a definhar, até que acabam miseravelmente.

Mandou Cristo a S. Pedro que fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe que tomasse, acharia uma moeda, com que pagar certo tributo. Se Pedro havia de tomar mais peixe que este, suposto que ele era o primeiro, do preço dele e dos outros podia fazer o dinheiro com que pagar aquele tributo, que era de uma só moeda de prata, e de pouco peso. Com que mistério manda logo o Senhor que se tire da boca deste peixe e que seja ele o que morra primeiro que os demais?
Ora estai atentos. Os peixes não batem moeda no fundo do mar, nem têm contratos com os homens, donde lhes possa vir dinheiro; logo, a moeda que este peixe tinha engolido, era de algum navio que fizera naufrágio naqueles mares. E quis mostrar o Senhor que as penas que S. Pedro ou seus sucessores fulminam contra os homens que tomam os bens dos naufragantes, também os peixes por seu modo as incorrem morrendo primeiro que os outros, e com o mesmo dinheiro que engoliram atravessado na garganta.

Oh que boa doutrina era esta para a terra, se eu não pregara para o mar! Para os homens não há mais miserável morte, que morrer com o alheio atravessado na garganta; porque é pecado de que o mesmo S. Pedro e o mesmo Sumo Pontífice não pode absolver. E posto que os homens incorrem a morte eterna, de que não são capazes os peixes, eles contudo apressam a sua temporal, como neste caso, se materialmente, como tenho dito, se não abstêm dos bens dos naufragantes.

VI

Com esta última advertência vos despido, ou me despido de vós, meus peixes. E para que vades consolados do sermão, que não sei quando ouvireis outro, quero-vos aliviar de uma desconsolação mui antiga, com que todos ficastes desde o tempo em que se publicou o Levítico. Na lei eclesiástica ou ritual do Levítico, escolheu Deus certos animais que lhe haviam de ser sacrificados; mas todos eles ou animais terrestres ou aves, ficando os peixes totalmente excluídos dos sacrifícios. E quem duvida que esta exclusão tão universal era digna de grande desconsolação e sentimento para todos os habitadores de um elemento tão nobre, que mereceu dar a matéria ao primeiro sacramento? O motivo principal de serem excluídos os peixes, foi porque os outros animais podiam ir vivos ao sacrifício, e os peixes geralmente não, senão mortos; e cousa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares. Também este ponto era muito importante e necessário aos homens, se eu lhes pregara a eles. Oh quantas almas chegam àquele altar mortas, porque chegam e não têm horror de chegar, estando em pecado mortal! Peixes, dai muitas graças a Deus de vos livrar deste perigo, porque melhor é não chegar ao sacrifício, que chegar morto. Os outros animais ofereçam a Deus o ser sacrificados; vós oferecei-lhe o não chegar ao sacrifício; os outros sacrifiquem a Deus o sangue e a vida; vós sacrificai-lhe o respeito e a reverência.

Ah peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade! Quanto melhor me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo indignamente! Em tudo o que vos excedo, peixes, vos reconheço muitas vantagens. A vossa bruteza é melhor que a minha razão e o vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis a Deus com a memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade. Vós fostes criados por Deus, para servir ao homem, e conseguis o fim para que fostes criados; a mim criou-me para o servir a ele, e eu não consigo o fim para que me criou. Vós não haveis de ver a Deus, e podereis aparecer diante dele muito confiadamente, porque o não ofendestes; eu espero que o hei-de ver; mas com que rosto hei-de aparecer diante do seu divino acatamento, se não cesso de o ofender? Ah que quase estou por dizer que me fora melhor ser como vós, pois de um homem que tinha as mesmas obrigações, disse a Suma Verdade, que «melhor lhe fora não nascer homem»: Si natus non fuisset homo ille. E pois os que nascemos homens, respondemos tão mal às obrigações de nosso nascimento, contentai-vos, peixes, e dai muitas graças a Deus pelo vosso.

Benedicite, cete et omnia quae moventur in aquis, Domino: «Louvai, peixes, a Deus, os grandes e os pequenos», e repartidos em dois coros tão inumeráveis, louvai-o todos uniformemente. Louvai a Deus, porque vos criou em tanto número. Louvai a Deus, que vos distinguiu em tantas espécies; louvai a Deus, que vos vestiu de tanta variedade e formosura; louvai a Deus, que vos habilitou de todos os instrumentos necessários à vida; louvai a Deus, que vos deu um elemento tão largo e tão puro; louvai a Deus, que, vindo a este Mundo, viveu entre vós, e chamou para si aqueles que convosco e de vós viviam; louvai a Deus, que vos sustenta; louvai a Deus, que vos conserva; louvai a Deus, que vos multiplica; louvai a Deus, enfim, servindo e sustentando ao homem, que é o fim para que vos criou; e assim como no princípio vos deu sua bênção, vo-la dê também agora. Amen. Como não sois capazes de Glória, nem de Graça, não acaba o vosso Sermão em Graça e Glória.
Texto revisto e digitalizado por

© Deolinda Rodrigues Cabrera

Chaves, 1996
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