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quinta-feira, novembro 26, 2009

O meu amigo Tarcísio Trindade - António Pedro Vicente

O MEU AMIGO TARCÍSIO TRINDADE

CONHECI OS PAIS DO TARCÍSIO quando era muito jovem. Teria 10 anos. Sucede que, por esse tempo, passava, com os meus irmãos, as férias no Norte, mais particularmente na Bairrada. Aí desfrutava os meses de Agosto e Setembro em casa de parentes generosos que me proporcionavam, anualmente, a grande aventura do afastamento de Lisboa. Nos primeiros dias de Outubro o meu Pai, cujo trabalho o inibia de férias prolongadas, vinha buscar-nos para iniciar o novo ano escolar. No seu Austin 8 cv, um carrinho de pouca potência, iniciava-se a grande aventura da longuíssima e perigosa viagem até Lisboa. Partia-se pelas 9 horas da manhã depois de atulhado o pequeno carrito com a família e as bagagens. À hora do almoço chegava-se, geralmente, aos arredores de Coimbra onde se celebrava o ritual de um piquenique. Depois, pelas cinco da tarde, era a entrada em Alcobaça. Aí residia, para mim, a parte mais importante da grande epopeia da época balnear. Alcobaça, efectivamente, seduzia-me, não tanto pelos seus monumentos, mas pela sempre lembrada visita à casa de antiguidades dos pais do Tarcísio. Era a magia dos objectos aí existentes que, acirrando a minha curiosidade, constituía a maior riqueza e compensação para suportar o infindável trajecto que, por esse tempo, constituía a viagem de Águeda a Lisboa. Entretanto, antes de chegar a Coimbra já tínhamos parado na Malaposta para cumprimentar o senhor Barbosa, proprietário da melhor oficina de automóveis da região. Aí residia uma paragem sedutora onde me deliciavam os seus automóveis antigos.
O agradável piquenique dos arredores de Coimbra, ao que me lembro, era sempre desfrutado com o bom tempo que, normalmente, caracteriza os primeiros dias de Outubro. Mas, Alcobaça, ou melhor, a casa comercial dos pais do Tarcísio constituía o ponto alto dessa interminável jornada. Aí, entre as inúmeras surpresas que ornamentavam este sedutor tipo de comércio encontrava as peças para quem, como eu, dava os primeiros passos no gosto pelo coleccionismo. Sempre no mesmo lugar, permaneciam, todos os anos, dois objectos que para mim se sobrepunham a todo o rico recheio destes conhecidos antiquários.
Nunca averiguei com exactidão, mas penso que hoje ainda ornamentam as casas dos descendentes, entre os quais figura o meu querido amigo Tarcísio Trindade. Uma dessas peças era uma cadeira negra, aparentemente vulgar, toda em madeira, onde me sentava e começava a ouvir uns acordes musicais que gravei para sempre. Os meus pais, zelosos dos interesses comerciais dos proprietários, recriminavam a minha ousadia. Outra peça, fronteira ao assento musical, era um quadro a óleo onde, entre o aglomerado de casas, surgia uma igreja cujo relógio da respectiva torre era verdadeiro. Era uma espécie da visão surrealista que se me deparava. Já me foi contada a história dessas duas peças, as quais, ao que me lembro, observei durante anos.
Depois, lá se prosseguia a viagem, até Lisboa, onde se chegava cerca da meia-noite. Nesses anos não tinha sequer conhecimento da existência do Tarcísio. Conheci-o, pouco após o 25 de Abril, já depois de ter saído dos calabouços onde, o antigo Presidente da Comarca de Alcobaça, tinha sido conduzido pela sua “actividade fascista”. Afirmo, desde já, que jamais conheci autarca mais amante da sua terra como este descendente dos antiquários que guardavam os meus tesouros alcobacenses. Muitos anos passados, e quando a estrada Porto-Lisboa já não passava por essa terra monumental, descia a Rua do Alecrim e deparei com uma ampla loja com milhares de livros amontoados no chão. Entrei e conheci um senhor muito simpático que percebi ser o locatário, o ex-Presidente da Câmara de Alcobaça, o filho dos antiquários e o célebre livreiro que, em Madrid, tinha descoberto o primeiro livro impresso em Portugal. Acabado de sair da cadeia, resolvera montar o seu negócio. Era o Tarcísio Trindade. A maravilhosa e sempre alimentada relação humana estava estabelecida desde esse dia. Tarcísio é civilizado, inteligente, modesto e principalmente, extraordinário conhecedor do livro antigo. Como afirmei e insisto, estavam dados os passos para uma amizade que permanece e que se estendeu a toda a sua família onde sobressai a simpatiquíssima Mafalda, a sua Mulher de sempre. A este agente intelectual muito devo, não só pelos livros que lhe adquiri, como pelos preços honestos que me proporcionou. Tarcísio Trindade constituiu um grande auxiliar na minha profissão. As peripécias da nossa relação são inesquecíveis, a começar pela entrada na sua loja onde a recepção é sempre calorosa. Depois, os diálogos enriquecidos pelas historietas relativas ao negócio que os livros proporcionam. A alegria manifestada quando tem “material” que interessa aos seus clientes / amigos e que particularizo na colecção de folhetos anti-napoleónicos e anti-revolucionários que ia descobrindo e guardava para este seu amigo. Uma sã intimidade nascida naquele dia dos livros amontoados no chão e que, pouco depois, eram colocados nas estantes “Olaio” ainda hoje repletas com a ajuda preciosa do filho Bernardo, também um querido amigo, que lhe sucedeu no gosto alfarrabista. Não esqueço a boa recepção a clientes ignorantes, um tratamento igual para todos. A mesma deferência que tem para com o consagrado coleccionador. Tantas vezes me sentei à mesa deste humilde mas sábio, o Amigo Tarcísio Trindade, inclusive no célebre 11 de Setembro que abalou os E.U.A. e o mundo, coincidindo com o seu aniversário.
Meu querido Tarcísio: prossiga com a mesma postura sábia e generosa e receba um abraço muito apertado, extensivo a todos os seus, deste muito admirador e amigo, e da Ana, minha mulher, que também lhe deseja muita saúde.
Lisboa, 10 de Julho de 2009

António Pedro Vicente

Damião Peres e o Padre Casimiro ou evocação de um príncipe do mundo dos livros - António Ventura

DAMIÃO PERES E O PADRE CASIMIRO
OU EVOCAÇÃO AMIGA DE UM PRÍNCIPE
DO MUNDO DOS LIVROS

JÁ LÁ VÃO MAIS DE TRINTA ANOS. Depois de um ano na Faculdade de Letras, numa passagem fugaz pelo curso de Germânicas, ingressei na Força Aérea Portuguesa, no curso de cadetes na Base Aérea da Ota. A partir de então, com um pouco mais de tempo depois da promoção a oficial, pude dedicar-me a uma paixão que tinha desde a escola primária – hoje já não se chama assim, talvez por ser politicamente incorrecto.
Essa paixão era e é a História. Em Lisboa, ensaiei as primeiras e tímidas incursões num mundo novo para mim, o mundo dos alfarrabistas. Alfarrabista! Palavra mágica, sonora, colorida, que foi a pouco e pouco sendo substituída por sinónimos mais tecnocráticos, mas sem dúvida menos belos. Numa dessas expedições entrei pela primeira vez no n.º 44 da Rua do Alecrim. Uma sala enorme, com estantes, mas desprovida das mesas que depois foram ali colocadas. Uma enorme pilha de livros bem encadernados acabados de chegar, chamou a minha atenção. Timidamente perguntei ao livreiro: «o que era aquilo». Ao que ele me respondeu: «é a biblioteca de Damião Peres». Comprei um desses livros, os Apontamentos para a História da Revolução do Minho em 1846, do padre Casimiro, e ainda me recordo do preço: 100$00.
Foi esse o meu primeiro contacto com Tarcísio Trindade e impressionou-me a sua simpatia e afabilidade para com um jovem desconhecido que entrava a medo nesse universo maravilhoso dos livros. Sempre que possível eu passava pela livraria na expectativa de encontrar qualquer coisa que podia ser um livro, um documento, uma gravura. Pequenas e grandes bibliotecas passaram por aquelas estantes. Recordo, a título de exemplo, a de Castelo Branco Chaves, com tantos livros sobre a França e a Revolução Francesa que me foram muito úteis, ou uma outra oriunda de Santarém, igualmente rica em obras sobre aquela temática. Nesses casos, a ida ao n.º 44 da Rua de Alecrim era em dias sucessivos, encontrando, por vezes, outros clientes com os quais havia sempre tema de conversa – António Valdemar, Bigotte Chorão, António Pedro Vicente…
Quantas histórias ali ouvi, quantas curiosidades, quantas informações úteis dadas por alguém que conhecia o meio como poucos e que, para além disso, aliava ao conhecimento uma generosidade sem limites. A pouco e pouco a relação livreiro-cliente foi sendo substituída por outra, onde a amizade e a mútua estima se tornaram cada vez mais evidentes e alargadas ao seu continuador, o Bernardo.
Ainda há pouco, olhando para a estante onde repousa o livro do padre Casimiro, recordei a história que antes relatei. E tantas histórias sobre tantos livros!
Para mim, Tarcísio Trindade é muito mais do que um livreiro que marcou profundamente o meio
lisboeta nas últimas décadas. É um Príncipe desse mundo mágico.Mas, acima de tudo, um Amigo e um Senhor. Um Senhor com um «S» grande, numa época em que impera a mediocridade, a venalidade e a falta de carácter.
Bem-haja por tudo, querido Amigo!

António Ventura

O meu querido amigo Tarcísio - Luís Bigotte Chorão

O MEU QUERIDO AMIGO TARCÍSIO

PASSARAM JÁ MUITOS ANOS sobre o dia em que pela primeira vez transpus a porta da Livraria Campos Trindade.
Recordo perfeitamente a silhueta de um Senhor, sentado a uma secretária ao fundo da loja, que, à minha entrada, se ergueu para me saudar. Trocámos cumprimentos e justifiquei a minha visita: curiosidade pelos livros antigos.
Porque os livros que estavam expostos não me tivessem chamado a atenção, centrei-me a apreciar as obras de referência, que impecavelmente organizadas se dispunham em estantes inacessíveis. A bibliografia, a história e importância dos livros sobre livros, e dos catálogos de bibliotecas, serviram de mote a uma primeiro diálogo com Tarcísio Trindade, em que, como em tantos outros ao longo do tempo, fui seu aluno e ouvinte atento.
Estava longe de pensar que esse encontro inaugurasse muito mais que uma relação pessoal cordialíssima, uma amizade verdadeiramente excepcional.
Tornei-me naturalmente uma visita frequente da Livraria Campos Trindade, e o passar do tempo haveria de cimentar uma relação de confiança que fez de Tarcísio um dos meus mais queridos amigos.
Não estranha, assim, que me seja gratíssimo dar aqui o testemunho de um convívio ininterrupto,
cimentado numa inabalável confiança recíproca.
Acompanhando-o, como o acompanhei, fui beneficiário da sua vastíssima cultura, e como todos os seus clientes, da sua correcção e seriedade impecáveis. Em muitas ocasiões o vi estudar as obras, contar os cadernos e as páginas, verificar as gravuras, para, na sua inconfundível caligrafia, as anotar num gesto de máxima lealdade para com os seus clientes. Como se não bastasse, fazia ainda questão de perguntar aos interessados se tinham lido os seus “alertas”; a sua consciência de profissional probo, não lhe consentia aproveitar-se do desconhecimento alheio. Eu próprio beneficiei dos seus avisos.
Conhecedor profundo do livro e da história da edição, Tarcísio Trindade foi meu permanente e sábio conselheiro. Devo-lhe o ter aprendido a não me precipitar, a saber esperar, a valorizar certas espécies bibliográficas consideradas “menores”. Tarcísio sugeria-me um exemplar mais “limpo” – garantindo- me que ele haveria de aparecer na sua loja, e não tenho memória que alguma vez se tenha equivocado –, e conhecendo, como poucos, os meus livros, permitiu-me, através de permutas, que ele próprio me sugeria, valorizar a minha biblioteca com exemplares, como sempre diz, “mais estimados”.
Tarcísio Trindade partilhou comigo muitas das suas alegrias como livreiro, não raro dando-me notícia antecipada das suas aquisições ou convocando-me para a hora de chegada das suas compras à Rua do Alecrim.
Em muitas ocasiões recebi pelo telefone pedidos seus para que me deslocasse à loja. Criava “suspense”, sugeria mesmo tratar-se de assunto pessoal, e à minha chegada abria-se num sorriso. O que estava lá à minha espera era a obra que eu vinha procurando; lembro-me que foi assim com a colecção da Seara Nova, com a da Ilustração Portuguesa e outras mais.
Discretíssimo, e de uma enorme modéstia, só a meu pedido me ofereceu, com uma dedicatória tocante,o seu premiado Os Meninos e as Quatro Estações. Preferia não falar de um seu sucesso, reconhecido, aliás, expressivamente, por António José Saraiva e Óscar Lopes.
Mas Tarcísio Trindade não é só o Homem de cultura, o poeta roubado à escrita pelo amor dos livros. Como cidadão continua a cumprir a sua missão de serviço aos outros. Antes, como Presidente da CâmaraMunicipal, depois, como autarca apaixonado pela sua terra noutras funções, de há muito tempo a esta parte como Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Alcobaça.
De Tarcísio Trindade recebi ao longo dos anos testemunhos inesquecíveis da sua amizade e imensa generosidade, mas sobretudo desejo registar aqui o sentimento de gratidão pelo muito que me ensinou.

Lisboa, 5 de Abril de 2009
Luís Bigotte Chorão

Tarcísio Trindade ou a cultura e a modéstia de mãos dadas - Artur Anselmo

TARCÍSIO TRINDADE
OU A CULTURA E A MODÉSTIA DE MÃOS DADAS

TEVE TARCÍSIO TRINDADE A SORTE de nascer e crescer entre antiguidades. Na Alcobaça dos anos 40 e 50 do século XX, a loja dos pais (António e Alice) guardava o ambiente típico do comércio europeu desenvolvido à sombra dos grandes conventos e abadias: mercadoria seleccionada a pensar nos turistas, tanto mais que a vila beneditina era então ponto de paragem quase obrigatória para quem viajava de carro entre Lisboa e Porto. Cerâmica em profusão, mobiliário, artesanato, livros antigos, estampas, peças de colecção, pergaminhos iluminados, objectos de “Art and Vertu”, pinturas, esculturas e desenhos, relógios, tapetes orientais, arte sacra e arte africana, “snuff boxes”, filatelia, loiça chinesa, armaria, mapas, postais, havia muito por onde escolher. Com uma nota curiosa: cada objecto, na sua riqueza ou na sua modéstia, era exposto no lugar mais adequado.
Este cuidado com a apresentação da mercadoria é, sem dúvida, hábito familiar inveterado, de que facilmente se apercebe quem entra na lisboeta Livraria Alfarrabista da Rua do Alecrim, onde
Tarcísio Trindade se instalou na década de 70: todos os objectos em exposição, depois de limpos e devolvidos à sua frescura original, são arrumados, como manda a melhor tradição do display comercial, da maneira mais conveniente a um exame dos seus traços fundamentais. Nada de atropelos, nada de misturas ao arrepio da própria natureza das coisas, nada de barafundas: cada objecto integrado no ambiente do interior da loja, como se, mesmo antes de mudar de mãos, estivesse já a viver uma vida autónoma. Aliás, a tradição familiar mantém-se também na actividade comercial de João e António, dois dos irmãos de Tarcísio Trindade que o seguiram na carreira de antiquário: as suas lojas, igualmente situadas na Rua do Alecrim, espelham essa preocupação de bom gosto disciplinado, que torna mais atraentes os objectos em exposição.
No caso particular do livreiro Tarcísio Trindade, o geometrismo do interior da loja reflecte o espírito alinhado do proprietário, e até a sua formação intelectual: sólida preparação clássica nas Humanidades, excelente aptidão cultural em áreas afins (música, artes plásticas, mobiliário, coleccionismo de alta curiosidade), domínio absoluto da técnica tipográfica, iconográfica e litográfica. Sobre tudo isto, um pendor natural para a análise psicológica, para a convivialidade e para a empatia com os seus clientes. Alguns destes prezam atentamente as notas manuscritas que o lápis n.º 1 de Tarcísio escreve no verso do anterrosto dos livros que tem à venda: lembro, ao acaso, as que lhe vi lançar em exemplares de obras de Damião de Góis, Fernão Mendes Pinto, Frei Bernardo de Brito (tanto o historiador da Monarquia Lusitana como o suposto autor da Sílvia de Lisardo), e bem assim em edições raras da Marília de Dirceu, d’O Crime do Padre Amaro ou das Horas de Luta, sem esquecer o primeiro livro impresso no Brasil, de que localizou uma variante datada de ... 1247, em vez de 1747.
Desde a época em que Tarcísio Trindade frequentava o Direito e a Poesia, o pai António deu-se conta de que o filho tinha um jeito especial para o comércio de antiguidades, e particularmente para os livros e papéis antigos, fossem os alcobacenses (de que, entretanto, começara a formar uma colecção de qualidade insuperável), fossem os clássicos portugueses e espanhóis, a par de pontos fortes da bibliofilia internacional: a Brasiliana, a Judaica, a Orientalia, a Americana Vetustissima, a Inquisição, o Sigilismo, etc. Assim, quando, um dia, Tarcísio lhe apareceu encartado de viaturas automóveis, logo surgiu, pronta, a autorização de que o filho se metesse a caminho das minas ibéricas, então ainda bem recheadas do que restava dos opulentos espólios dos conventos nacionalizados pelo liberalismo, das casas abatidas pela reforma vincular, das bibliotecas dos barões luso-brasileiros que os seus herdeiros analfabetos deixavam apodrecer. Eram os tempos em que Carranca Redondo, de trincha em punho, coloria as bermas das estradas portuguesas de publicidade ao Licor Beirão: tempos duros para a classe média agrícola de Portugal e mais ainda para todas as franjas sociais da Espanha. Como estranhar, pois, que mercadoria biblíaca de todo o tipo e feitio afluísse ao mercado de colportage? Não era verdade que, em Roma, coração da cultura europeia, se vendiam incunábulos nos passeios das ruas, a seguir à guerra de 39-45? Em Espanha, principalmente, a oferta era tanta que, não raro, o jovem
livreiro português via-se obrigado a restringir as compras ao volume da mala do carro.
Os clientes de Tarcísio Trindade conhecem-no, hoje, como um reputado bibliólogo (sem dúvida, um dos mais cultos e mais esclarecidos do mercado português), mas nem todos saberão que os primeiros passos da sua carreira comercial foram dados em torno da pintura, da arte sacra e do mobiliário. De terra em terra, comendo aqui, dormindo acolá, sem eira nem beira – como o Carranca do Licor Beirão –, o jovem Tarcísio mergulhava nas profundezas do património cultural
ibérico e, de malas aviadas, regressava a Alcobaça com a sensação de ter aprendido sempre um pouco mais. Por vezes, durante as viagens, só chegava a tomar conhecimento da mercadoria no quarto da pensão em que se hospedava, como sucedeu em 1965, quando, desfolhando uma miscelânea de incunábulos italianos e ibéricos, se lhe deparou um exemplar do mais antigo livro impresso na língua portuguesa: o Tratado de Confissom, executado em Chaves, por um tipógrafo anónimo, em 1489.
Perguntando um dia a Tarcísio Trindade qual a zona do país onde encontrara os testemunhos
mais surpreendentes do património bibliográfico, respondeu-me, sem hesitar, que essa lhe parecia ser a região de Lamego e de Tarouca. Mas não deixou de salientar a estupenda qualidade dos livros de algumas bibliotecas particulares da velha Lisboa (Madragoa, Bairro Alto, Alfama, Castelo, Mouraria) e do Alentejo, sem esquecer a biblioteca dos familiares de Pedro Ivo, nos arredores do Porto, os magníficos fundos do livreiro Francisco Moreira Sénior, na Amadora, ou, entre tantos outros espólios, o do marechal Carmona e o do doutor Júlio Dantas.
Já contei algures a história de uma biblioteca defendida por espessa cortina de teias de aranha, que Tarcísio Trindade teve o gosto de ressuscitar, em Alfama, de uma divisão palaciana onde ninguém entrava há dois séculos. Lembro-me do espanto com que ouvi da sua boca a descrição das preciosidades que os aranhiços souberam manter incólumes graças ao manto branco tecido à volta das estantes. E, no que toca aos numerosíssimos clientes que com ele privaram, como esquecer aquele gerente bancário de Leiria, possuidor de todos os primeiros livros de Miguel Torga com dedicatórias do autor, que, estando de candeias às avessas com o seu ex-amigo, decidiu passar esses livros preciosos para mãos estranhas?
Gostaria ainda de aludir a um traço do carácter de Tarcísio Trindade que sempre me fascinou: a sua natural modéstia perante o pedantismo de alguns clientes. Quando um destes, dos tais que “bebem do fino”, tenta impressioná-lo com torrentes de informação bibliográfica que Tarcísio está farto de conhecer de cor e salteado, não se julgue o livreiro capaz de repetir o dito do rei D. João Carlos de Espanha (“Por que no te callas?”). Nem pensar nisso! Pelo contrário, fixando bem nos olhos o finório, deixa cair simplesmente este comentário:
– Muito interessante o que me está a dizer, muito interessante...
Artur Anselmo

Tarcísio Trindade: perfil cultural e cívico - António Valdemar

TARCÍSIO TRINDADE
PERFIL CULTURAL E CÍVICO

LIVREIRO ALFARRABISTA de projecção nacional e internacional, Tarcísio Trindade tem lugar de evidência na história da cultura portuguesa. Possui conhecimento profundo da introdução e difusão da tipografia europeia nos séculos XV e XVI e das espécies bibliográficas mais famosas que existem, dentro e fora de Portugal, em bibliotecas públicas e privadas.
A sua loja, na Rua do Alecrim, tornou-se, presentemente, a última tertúlia erudita de Lisboa frequentada por intelectuais, artistas e coleccionadores portugueses e estrangeiros. Pode classificar-se uma antecâmara da Academia das Ciências, da Academia da História e até da Academia Nacional de Belas-Artes. Ali têm sido adquiridas «raridades insignes» para citar uma classificação habitual em estudos e memórias bibliográficas, e que, juntamente com os preciosos esclarecimentos de Tarcísio Trindade, vieram alterar, por completo, muitas teses conhecidas.
O caso mais significativo refere-se à localização e à informação devidamente fundamentada, pelo próprio Tarcísio Trindade, do mais antigo livro impresso em Portugal, o Tratado da Confissom (Chaves, 1489). A partir desta revelação, Pina Martins, professor da Faculdade de Letras de Lisboa, sócio efectivo da Academia das Ciências e da Academia Portuguesa de História, conseguiu apresentar, na Sorbonne, e perante um júri presidido por Marcel Bataillon – mestre eminente de estudos humanistas e renascentistas – uma tese universitária que modificou, na época, tudo quanto estava publicado acerca do início da tipografia em Portugal.
Ruben Borba deMoraes – que procedeu, no Brasil, a um inventário bibliográfico semelhante ao que Barbosa Machado e Inocêncio fizeram em Portugal – procurou Tarcisio Trindade numa das suas visitas a Portugal. Esse contacto permitiu-lhe completar o levantamento exaustivo dos primórdios da tipografia no Brasil.
Trata-se da Relação da entrada que fez o excellentissimo, e reverendíssimo senhor D. Fr. Antonio do Desterro Malheyro Bispo do Rio de Janeiro, em o primeiro dia deste prezente Ano de 1747 (…), a primeira obra impressa no Brasil por António Isidoro da Fonseca que já se havia notabilizado com a edição das obras poéticas e teatrais de António José da Silva, o Judeu, tragicamente queimado em auto-de-fé pela Inquisição em Lisboa, devido à sua origem familiar.
A quase totalidade da edição foi apreendida e retirada de circulação. O confisco e destruição deveu-se ao facto do estabelecimento da imprensa no Brasil ser considerado «perigoso e nocivo» aos interesses da Metrópole. Por outro lado, a censura exercida pelo Tribunal do Santo Oficio funcionava em Lisboa. Esta determinação inexorável prolongou-se até 1808, altura da transferência da Corte para o Rio de Janeiro.
Só conhecia apenas Rubem Borba de Moraes os seguintes exemplares da Relação da entrada do bispo Malheiro: dois na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (um dos quais proveniente da colecção Barbosa Machado e que foi para o Brasil com a Corte); um na Catholic University of America, em Washington (incluído na doação de Oliveira Lima); outro na biblioteca de Nova Iorque; e ainda mais outro na Biblioteca da Universidade de Coimbra. Mas além destes também havia exemplares da Relação da entrada do bispo Malheiro, com uma gralha na data da impressão (em vez de MDCCXLVII (1747) saiu impressa MCCXLVII (1247)): o da Biblioteca do Itamarati e o da Biblioteca de Nova Iorque. Eram as raridades da raridade. Borba de Moraes ficou a ter mais outro que lhe vendeu, nos anos 60, Tarcísio Trindade.
Hoje integra o acervo de José Mindlin, um dos maiores coleccionadores de livros de todo o mundo, que possui a maior biblioteca particular de língua portuguesa. Tive o privilégio de conhecer pessoalmente José Mindlin, na loja da Rua do Alecrim de Tarcísio Trindade, numa das suas passagens por Lisboa. Era, ao tempo um jovem, com mais de 90 anos e ainda não tinha entrado na Academia Brasileira de Letras.
Houve uma empatia recíproca neste encontro. Ofereceu-me, depois, o livro da sua autoria Destaques da Biblioteca InDisciplinada de Guita e José Mindlin, uma edição de luxo da Biblioteca Nacional do Brasil que nos coloca em face da evolução da tipografia e outras artes gráficas, assim como da história do Brasil em múltiplos sectores.
Mas regresso, nesta breve evocação, ao universo inesgotável do livreiro alfarrabista de projecção nacional e internacional Tarcísio Trindade, que é, há longos anos, um dos meus amigos de eleição. Uma amizade que se estendeu à sua família, em particular a seu filho Bernardo Trindade, continuador de seu pai e com o qual tem aprendido muito mais do que lhe proporcionou a licenciatura em História.
Também frei Maur Cocheril, o maior especialista da história e difusão da Ordem de Cister na Península Ibérica ficou a dever a Tarcísio Trindade elementos de extrema importância a propósito de Alcobaça e da presença claravalense noutros pontos do país, desde os primórdios da nacionalidade. Maur Cocheril manifestou o seu reconhecimento:
«À Tarcísio, personnage officiel – ce qui est peu. Mon ami – ce qui est tout.»

Director e colaborador assíduo de jornais e revistas de Alcobaça, Tarcísio Trindade publicou obras de criação literária. O seu livro de poemas Os Meninos e as Quatro Estações mereceu destaque numa das edições da História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes. Não se limitou, contudo, Tarcísio Trindade à actividade profissional. Ao longo dos anos tem manifestado dedicação incomum por Alcobaça, terra onde nasceu e à qual consagrou grande parte da sua vida no exercício de funções na administração autárquica e nos sectores da solidariedade social. Como Presidente da Câmara e no domínio das obras públicas tomou decisões fundamentais na construção e reabilitação urbanas, electrificação, abastecimento de água , saneamento básico e viação rural. Foi, todavia, na área da educação, no início dos anos 70, com o apoio de Veiga Simão, ministro da Educação, que Tarcísio Trindade desenvolveu todos os esforços até haver em Alcobaça e no seu concelho a introdução e oficialização do ensino secundário completo (a cargo da Câmara, um caso único no País); a oficialização da Escola do Ensino Preparatório da Benedita, a criação da Escola do Ensino Preparatório em São Martinho do Porto; a construção de Escolas do Ensino Primário e do Pavilhão Gimnodesportivo de Alcobaça, um dos primeiros erguidos no país. Milhares de jovens sem recursos económicos passaram a adquirir formação escolar e habilitações oficiais que, antes, só existia para os beneficiados da fortuna que se deslocavam para Coimbra e Leiria. Toda esta acção de Tarcísio Trindade, na presidência da Câmara de Alcobaça, transformou radicalmente o concelho e reflectiu-se, de forma assinalável, no centro do país.
Nas últimas décadas, Tarcísio Trindade, na presidência da Assembleia Municipal de Alcobaça, na presidência da ADEPA (Associação para a Defesa do Património Cultural de Alcobaça) e, sobretudo, como Provedor da Misericórdia, levou a efeito muitas outras realizações. Retirou do convento serviços públicos e de interesse público que permaneciam em circunstâncias degradantes. Deixou de funcionar ali o tristemente célebre asilo de mendicidade para nascer um lar de terceira idade, construído de raiz e, sob todos os aspectos, verdadeiramente modelar.
Por tudo isto, a Chancelaria das Ordens Honoríficas Nacionais atribuiu a Comenda da Ordem de Mérito a Tarcísio Trindade que lhe foi entregue, em Alcobaça, pelo Presidente da República, Jorge Sampaio. Também a Academia Nacional de Belas-Artes elegeu, por unanimidade, Tarcísio Trindade para sócio correspondente.
Assim se prestou justa homenagem a Tarcísio Trindade pelas muitas obras que promoveu de largo alcance social e reconhecida projecção cultural. Restituiu o conjunto monumental do mosteiro de Alcobaça classificado pela UNESCO no Património da Humanidade à sua dignidade multissecular. Criou condições, naquele espaço, marcado pela história e tradição, para implantar um projecto que conduz à identificação da população com as suas raízes, estimulando também a intervenção cultural e cívica para responder aos desafios do nosso tempo e aos imperativos do futuro.

António Valdemar

O menino e as quatro estações - Bernardo Trindade

O MENINO E AS QUATRO ESTAÇÕES

FOI COM 25 TOSTÕES, com a venda de um postal, que, sentado nos degraus de um escadote que ainda utilizo todos os dias, iniciei o meu caminho na livraria do meu pai. Tinha 6 anos e todos os clientes achavam graça a um miúdo tímido que se entretinha a “aviar” postais antigos como se fossem trocas de cromos com os amigos. A loja, naquele momento, era o meu mundo.
Todos nós, pais e irmãos, tínhamos vindo de Alcobaça, depois de tempos muito difíceis, que só
mais tarde compreendi, e vivíamos dentro da livraria. Pouca gente sabe ou recorda este facto, mas o certo é que o vejo como fundamental para a minha formação como homem e como livreiro.
A história da Livraria Campos Trindade é a história da minha família e este sítio, sem dúvida diferente e especial, nasce da força e perseverança da pessoa que hoje todos homenageamos, Tarcísio Trindade, o meu pai.
Não é fácil falar de uma pessoa que acompanhei todos estes anos, não é fácil falar de uma pessoa tão complexa, o meu maior e, ao mesmo tempo, mais inacessível amigo, que sempre me estendeu uma passadeira estreita, sim, mas incrivelmente firme, que me permitiu ser quem sou hoje no meio do livro antigo.
Foi a observar e a acompanhar diariamente o seu trabalho que aprendi tudo o que sei sobre esta profissão e seus segredos e a ele devo tudo o que consegui construir todos estes anos.
Conheci e conheço muitos livreiros, mas nenhum como o “senhor Trindade”, com um à-vontade tão grande no domínio do livro antigo português, com perfeita noção dos livros que via, comprava e vendia, tudo isto acompanhado de uma generosidade única, muitas vezes incompreendida, inclusive por mim.
O gozo desta profissão, no meu pai, sempre esteve no acto de descobrir os livros e também no que proporcionava aos amigos, clientes e livreiros ou futuros livreiros, iniciando também muita gente no comércio do livro antigo. Sempre descobrir e passar a alguém que, se quisesse, podia brilhar, mas o verdadeiro gozo, o de descobrir e trazer para o mercado coisas únicas e raras, já estava realizado e isso bastava-lhe. Foi esta postura que lhe permitiu, penso eu, ter hoje o estatuto que possui e a admiração de todos, os amantes do livro antigo e os seus colegas de profissão. Vivi algumas dessas descobertas, como quando folheei, ainda muito novo, um exemplar impecável dos dois volumes da primeira edição do Dom Quixote de Cervantes, ou mais tarde, quando descobrimos e comprámos juntos uma primeira edição dos Caprichos de Goya; e nasci de uma outra, da descoberta do primeiro livro impresso em português, o Tratado de Confissom, que permitiu aos meus pais juntar o necessário para iniciar uma vida a dois.
Espero ainda poder descobrir muito mais coisas e espero estar à altura de tudo o que o meu pai criou e proporcionou, agora que começo um novo capítulo da minha vida e da nossa livraria.
Com este 1.º Catálogo iniciamos um tipo de relação com os nossos amigos e clientes que não era habitual até aqui, mas que irá tornar-se realidade sempre que acharmos pertinente e necessário.

Bernardo Trindade

quinta-feira, novembro 19, 2009

Livraria Campos Trindade - Catálogo nº 1

Está disponível on-line o 1º catálogo da Livraria Campos Trindade, precioso não só em raridades bibliográficas como na própria história dos proprietários da Livraria. Sendo de salientar o nome de Tarcísio Trindade um reputado bibliólogo, reconhecido nacional e internacionalmente, até pelos seus pares.
Aconselho a lerem os artigos que estão incluídos neste primeiro catálogo, sobre uma personalidade ímpar no mercado dos livros antigos:
  • O MENINO E AS QUATRO ESTAÇÕES por Bernardo Trindade.
  • TARCÍSIO TRINDADE PERFIL CULTURAL E CÍVICO por António Valdemar.
  • TARCÍSIO TRINDADE OU A CULTURA E A MODÉSTIA DE MÃOS DADAS por Artur Anselmo.
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