domingo, março 15, 2009

«João Augusto de Ornelas» - Dr. Manuel Pedro Freitas


Ainda que subsistam algumas dúvidas, é opinião corrente de que João Augusto de Ornelas terá nascido na freguesia do Estreito de Câmara de Lobos a 26 de Junho de 1833, onde se terá também baptizado no mês seguinte ([1],[2]). Contudo, apesar destes dados terem sido escritos pelo seu próprio punho, a verdade é que nunca foi encontrado o correspondente registo, nos livros paroquiais, desconhecendo-se também quem terão sido os seus pais. Aliás, os seus nomes são também omitidos, tanto por ocasião do seu casamento com Adelaide Augusta da Silveira, realizado a 1 de Dezembro de 1866, em cujo assento surge apenas como solteiro, periodicista e natural do Estreito de Nossa Senhora da Graça ([3],[4]), como por ocasião da sua morte, verificada no Funchal, a 11 de Julho de 1886, e em cujo registo, para além de não haver qualquer referência aos seus pais, aponta-o ainda como tendo 57 anos [5], o que põe em causa o ano de 1833, como o correspondente ao do seu nascimento. Todos estes factos e mistérios em torno das suas origens fazem com que vários autores considerem que o seu romance "O Engeitado", possa corresponder a uma sua auto-biografia e, como consequência o apontem como tendo sido enjeitado ou exposto ([6]).
Apesar das circunstâncias que terão rodeado o seu nascimento, João Augusto de Ornelas terá tido uma mocidade e juventude risonha ([7]), até que pouco tempo depois de 1854, foi vítima de um acidente terrível, filho da imprevidência de uns amigos, e que despiedadamente o veio ferir em plena e alegre juventude ([8]), ficando, em consequência, paralítico para o resto da sua vida.
Este terrível golpe actuou profundamente no seu espírito. Nele pôs a nota triste que nunca mais o abandonou, que transluz no seu estilo e que todas as suas obras literárias, principalmente as novelas e romances, manifestamente exprimem. Caía despiedadamente do pedestal em que lhe sorriam as esperanças, em que as aspirações se lhe evolavam da mente como aves sonoras desantranhado-se em melodias e hinos. Ia-se-lhe a saúde; fugia-lhe a mocidade, obscurecia-lhe o horizonte ([9]).
Contudo, João Augusto de Ornelas não só não sucumbiria à sua desventura, como optaria pela luta e durante 30 anos nela e com ela viveu. O trabalho foi o seu médico, a sua consolação, o seu melhor lenitivo, na noite da sua existência mártir. E com ele venceu... Com ele pode viver e conquistar o nome, a posição que tinha entre os jornalistas e escritores portugueses ([10]).
João Augusto de Ornelas terá começado a sua actividade profissional por ser aprendiz de tipógrafo no jornal O Arquivista e na Ordem. Por essa altura terá começado a publicar algumas produções em jornais literários como o Baratíssimo, o Estudo, etc. Em 1854, encontramo-lo a frequentar o Liceu do Funchal ([11]). Em 1857, funda O Direito ([12]), do qual viria a ser seu director durante cerca de 27 anos ([13]). Muito lido desde os primeiros números, pela excelente colaboração que tinha de distintos escritores, este jornal à altura da sua morte, era o mais antigo jornal publicado na Madeira e um dos de mais crédito fora dela ([14]).
Na sua actividade jornalística à frente de O Direito, João Augusto de Ornelas defendeu com paixão e com convicção os seus ideais políticos, o que o fez cometer alguns erros, erros que por vezes lhe viriam escurecer a vida jornalística. Contudo, ao longo da sua vida de jornalista, não deixou de patrocinar com o mais desvelado empenho tudo o que fossem melhoramentos e benefícios para a Madeira, a ponto desta lhe dever muitos e relevantes serviços ([15]). Nas colunas do seu jornal, as questões de interesse local, quando não subordinadas a ideias de ordem política, que geralmente tudo pervertem e deturpam, eram bem tratadas, melhor estudadas e cuidadosamente trabalhadas ([16]).
No Direito, fez a sua aprendizagem, o seu tirocínio e o que ele chamava as suas conquistas. O jornal era o seu "alter-ego", a sua inspiração e a sua aspiração. Neste tirocínio ganhou forças para outros cometimentos ao nível da escrita ([17]).
A sua obra literária é muito vasta não só pelas obras que publicou, como pela colaboração que deixou dispersa por vários jornais. Estreou-se com algumas produções literárias no Estudo, e no Baratíssimo. Cultivou com grande êxito o romance tendo escrito e publicado "A Arrependida" com introdução de Júlio César Machado (Funchal, 1871); "João Augusto de Ornelas e a nova fábrica de açúcar" (Funchal, 1871); "A Coroa de Oiro ou a Honra da Justiça: O que foi e o que é José Cardoso Vieira de Castro" (Funchal, 1871); "Maria: Páginas íntimas", com prólogo de António Augusto Teixeira de Vasconcelos (1873); "A Mão de Sangue", com prefácio de Camilo Castelo Branco (Lisboa,1874) ([18]); "A Justiça de Deus", com prefácio de Manuel Pinheiro Chagas (Funchal, 1877); "A vítima de um Lazarista" (Porto, 1879); "A Companhia Fabril de Açúcar Madeirense, os seus Credores e o sr. Dr. João da Câmara Leme" (Funchal, 1879); "A Madeira e as Canárias" (Funchal, 1884); "A Fábrica de São João" (Funchal, 1879); "O Enjeitado", com introdução de Manuel Pinheiro (Porto, 1886). Publicou ainda outros romances e folhetins no jornal de que era director, como: "Virtude e Crime"; "A Madrasta"; "O Aristrocrata e o Artista"; "Amor e Sacerdócio"; "O Ingrato"; "Um Benefício"; "Espinhos e Rosas" e "Frei João ou uma Época da regência de D. Pedro IV", publicado no Direito, a partir do dia 26 de Janeiro de 1881.
Também se dedicou à poesia tendo versos insertos no livro "Prelúdio Poético" de J. Barros Coelho (Lisboa, 1857) e nas colectâneas: "Flores da Madeira" do cónego Alfredo César de Oliveira e do Dr. José Leite Monteiro (Funchal, 1871); "Album Madeirense de Poesias..." de Francisco Vieira (Funchal, 1884) e na "Musa Insular" de Luís Marino (Funchal, 1954) ([19]).
Em 1881, preparava-se para publicar um livro de biografias de pessoas importantes, o que nunca viria a acontecer ([20]).
Em 1883 teria em preparação trabalhos literários como "O filho segundo"; "Virgínia"; "Os mistérios do cemitério"; "Um baile a benefício"; "Os anos dum príncipe"; "Crime e virtude" e "Horas de Recreio" ([21]).
De todas as suas obras, a mais notável terá sido a "Mão de Sangue" ([22]) prefaciada por Camilo Castelo Branco e da qual, em 1998, foi publicada a sua 3ª edição.
Apesar da importância de João Augusto de Ornelas, como jornalista e escritor, a sorte foi-lhe, contudo, sempre pouco propícia e apesar de ter de lutar com as maiores contrariedades da vida - as privações angustiosas, as torturas sofridas no lar doméstico, as lutas travadas na imprensa, as calúnias e as difamações que contra ele levantaram os seus inimigos - somente deixou de manejar a pena quando a doença o inutilizou inteiramente para o trabalho ([23]).
Por ocasião da sua morte, o Diário de Notícias referindo-se aos últimos anos de vida de João Augusto de Ornelas, salientava que doente, cansado, exausto, infeliz, vergado ao peso da desventura, pobre e precisando de sustento, ele apresentava-se à sua mesa de trabalho, mesa que era um "mare magnum" de papéis; o corpo franzino e quase mirrado, envolto em pobres roupagens e trabalhava para o seu Direito, como lhe chamava, escrevendo, ditando, trabalhando sempre, para poder viver, como vivem aqueles a quem desde o berço, a desventura se propôs torturar-lhe a existência inteira ([24]).
Aliás, uma descrição semelhante é feita pelo Direito ao referir que quem entrasse, nestes últimos anos, na redacção do Direito, via a um canto, saindo de entre um montão de jornais, de livros e de papeis, um vulto arqueado, raquítico, de uma magreza extrema, a cabeça coberta de cabelos quase brancos, em desalinho, faces cavadas, de uma palidez terrosa e doentia, barba esqualida e mal cuidada, enchendo pequenas tiras de papel com uma letra miúda, informe e quase ininteligível.
Há mais de 20 anos que aquele homem estava ali, sentado àquela mesa, redigindo o seu Direito, compondo os seus romances, procurando no trabalho literário proventos para a sua subsistência e consolação e alívio à dura e horrível doença que o prenderá ali. Quase paralítico, alquebrado pelas enfermidades, sem família, envelhecera ali quase sequestrado do mundo, acorrentado àquela banca presidiário de um destino cruel e horrível ([25]).
No fim dos seus dias, já impossibilitado de escrever aproveitava a visita dos seus amigos e de pessoas que o procuravam, para lhes ditar os seus trabalhos literários e de correspondência ([26]).
A vida de João Augusto de Ornelas foi um contínuo labutar, incessante, guiado por um norte que a ninguém fica mal: a vontade de aparecer bem, destacando-se do comum ([27]). Envaidecia-o a opinião que dele formaram os nossos melhores escritores e para alcançá-la e guardá-la incolumo, trabalhou toda a vida, com tenaz e persistente constância ([28]).
No seu espírito culto, no seu coração, no seu modo de viver todo inteiro, em toda a sua vida de homem e de jornalista, manifestou um grande amor pelos pobres. Ele, que era muito pobre, contentava-se com o indispensável e distribuía o que lhe ficava, de boa vontade, sentindo-se bem em fazer bem, como que provando assim que, sabendo que é a desgraça, pelas condições de toda a sua vida, tinha jurado mitigá-la onde ela aparecesse.
Em sua casa dava agasalho, como uma esmola também, aos que o rodeavam, e que até os últimos momentos da sua vida o trataram com carinhoso afecto esforçando-se todos por lhe darem lenitivo as dores cruéis lancinantes que o torturavam sem piedade ([29]).
O pouco que tinha, que com tantos sacrifícios e tanto trabalho podia ganhar, repartia-o de bom grado com os pobres e, ele, que sofria tanto, que toda a sua vida fora vítima das mais cruciantes dores e dos mais fundos desgostos, sentia-se feliz, achava consolação e alívio em minorar com o seu obelo o sofrimento daqueles que pela dor e pela desventura lhe eram irmãos e companheiros. Por isso, morreu pobre, pobríssimo tendo repartido em vida com os desditosos o que o trabalho lhe pudera dar ([30]).
O seu amor pelos desprotegidos fê-lo não só ser sócio fundador da Associação de Beneficência do Funchal, como a apoiar através do seu jornal as instituições de beneficência, como o Asilo da Mendicidade e Orfãos, a cuja Comissão Administrativa chegou a pertencer. Foi aliás a uma destas instituições de beneficência que ficaria a dever os alimentos dos últimos dias da sua vida e o caixão que o levou à terra ([31]).
Possuía a comenda de cavaleiro da Ordem militar de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa; foi Procurador à Junta Geral do Distrito; Vogal da Comissão Administrativa do Asilo da Mendicidade, cargo que exerceu muito provavelmente desde 1868 ([32], [33]); foi um dos sócios fundadores do Grémio Literário e Recreativo dos Artistas Funchalenses ([34]) onde viria a ocupar a presidência da sua Assembleia Geral ([35]); foi sócio correspondente do Gabinete de Literatura de Pernambuco ([36]); foi sócio correspondente do Instituto de Coimbra, da Real Associação dos Arquitectos e Arqueólogos Portugueses, foi sócio ordinário da Sociedade Geografia de Lisboa e correspondente da de França e foi sócio fundador da Associação dos Jornalistas e Escritores Portugueses.


[1] De acordo com o Diário de Notícias de 26 de Junho de 1874 ele fazia anos nesse dia, o que demonstra a veracidade deste dia e mês de nascimento.
[2] Na rubrica "Noticiário" da edição de 24 de Agosto de 1867 João Augusto de Ornelas refere que nasceu a 26 de Junho de 1933 e foi baptizado nos fins de Julho do mesmo ano, na igreja paroquial de Nossa Senhora da Graça, concelho de Câmara de Lobos, tendo como padrinho João Napumneceno d'Oliveira. Por outro lado, no Assento no seu casamento João Augusto de Ornelas é referido como natural do Estreito de Nossa Senhora da Graça.
[3] MARINO, Luís. Galeria Biográfica - João Augusto de Ornelas. Diário da Madeira, 4 de Fevereiro de 1967. João Augusto de Ornelas era genro José Marciano da Silveira, professor primário, poeta e director de "A Voz do Povo".
[4] ARM Registos Paroquiais, Santa Maria Maior, 1866, Assento nº 43, 1 de Dezembro de 1866.
[5] ARM. Câmara Municipal do Funchal, livro 250, fls. 153, Óbito de 11 de Julho de 1886.
[6] SILVA, A Carvalho. Introdução histórico-literária à 3ª edição. Mão de Sangue, Funchal, 1998.
[7] João Augusto de Ornelas. O Direito, 21 de Julho de 1886.
[8] João Augusto de Ornelas. O Direito, 21 de Julho de 1886.
[9] João Augusto de Ornelas. O Direito, 21 de Julho de 1886.
[10] João Augusto de Ornelas. O Direito, 21 de Julho de 1886.
[11] João Augusto de Ornelas. O Direito, 21 de Julho de 1886.
[12] O Diário de Notícias de 13 de Julho de 1886, num texto relativo à sua morte, refere-se que João Augusto de Ornelas fundou com um cavalheiro muito inteligente desta terra, que ainda existe, para não nos deixar mentir, o Direito.
[13] O nome de João Augusto de Ornelas surge no cabeçalho de "O Direito" como seu director, no dia 8 de Julho de 1858.
[14] João Augusto de Ornelas. Diário de Notícias, 13 de Julho de 1886.
[15] João Augusto de Ornelas. O Direito, 21 de Julho de 1886.
[16] João Augusto de Ornelas. Diário de Notícias, 13 de Julho de 1886.
[17] João Augusto de Ornelas. Diário de Notícias, 13 de Julho de 1886.
[18] De acordo com Luis Marino em Galeria Biográfica, inserta no Diário da Madeira de 4 de Fevereiro de 1967, este romance foi também publicado em folhetim no Jornal "A Ilha", em 1933 e no Comércio do Funchal, que deu à estampa depois em separata em 1946. De acordo SILVA, A. Carvalho, na introdução histórico-literária à 3ª edição da "Mão de Sangue, publicada em 1998, um dos exemplares da 1ª edição desta obra, cujo frontispício, extraído do Dicionário de Camilo Castelo Branco, se publica no presente artigo, encontra-se na Biblioteca Municipal de Sintra.
[19] MARINO, Luís. Galeria Biográfica - João Augusto de Ornelas. Diário da Madeira, 4 de Fevereiro de 1967.
[20] De acordo com o Diário de Notícias de 1 de Setembro de 1881, João Augusto de Ornelas preparava-se para publicar um livro de biografias de pessoas importantes.
[21] SILVA, A Carvalho. Introdução histórico-literária à 3ª edição. Mão de Sangue, Funchal, 1998
[22] SILVA, A Carvalho. Introdução histórico-literária à 3ª edição. Mão de Sangue, Funchal, 1998.
[23] MARINO, Luís. Galeria Biográfica - João Augusto de Ornelas. Diário da Madeira, 4 de Fevereiro de 1967.
[24] João Augusto de Ornelas. Diário de Notícias, 13 de Julho de 1886.
[25] João Augusto de Ornelas. O Direito, 21 de Julho de 1886.
[26] MARINO, Luís. Galeria Biográfica - João Augusto de Ornelas. Diário da Madeira, 4 de Fevereiro de 1967.
[27] João Augusto de Ornelas. Diário de Notícias, 13 de Julho de 1886.
[28] João Augusto de Ornelas. O Direito, 21 de Julho de 1886.
[29] Diário de Notícias, 13 de Julho de 1886.
[30] João Augusto de Ornelas. O Direito, 21 de Julho de 1886.
[31] João Augusto de Ornelas. O Direito, 21 de Julho de 1886.
[32] De acordo com o Diário de Notícias de 20 de Junho de 1877 pedido nesta altura a sua demissão destas funções, desconhecendo-se se o Governador Civil terá ou não aceite
[33] De acordo com o Diário de Notícias de 20 de Junho de 1877, João Augusto de Ornelas há 9 anos vogal da Comissão Administrativa do Asilo da Mendicidade havia pedido a sua exoneração ao Governador Civil, que no entanto ainda não a havia aceite.
[34] De acordo com o Diário de Notícias de 4 de Abril de 1877 João Augusto de Ornelas foi um dos sócios fundadores do Grémio Literário dos Artistas Funchalenses.
[35] De acordo com o Diário de Notícias de 3 de Dezembro de 1878.
[36] De acordo com o Diário de Notícias de 24 de Outubro de 1880, tinha acabado de ser nomeado para essas funções.


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