''... Elle foy o primeiro Rey destes Reynos que ajuntou boõs liuros e fez livraria em seus paços'' : Assim se refere Rui de Pina, na sua Chronica do Senhor Rey Dom Affonso V ao que será porventura a instituição da Biblioteca Real, a antecessora da actual Biblioteca da Ajuda. A autoridade do cronista não colhe a existência de ''livrarias'' nos reinados anteriores, como é o caso bem sabido da biblioteca de D.Duarte.
No entanto, constitui por assim dizer uma certidão da fundação, visto que não se lhe conhece com anterioridade outra referência expressa. É provavel que esta livraria coexistisse em espaço e funç¢es com a Torre do Tombo, e sabe-se certamente onde, no Paço da Alcáçova, no castelo de S. Jorge. Sousa Viterbo sup¢e isso mesmo: ''... mas resta-me a duvida se a Bibliotheca de D.Affonso V seria um estabelecimento separado do Archivo Real, ou se uma e outra coisa estariam englobadas, formando um corpo unico, segundo parece'' (A cultura intelectual de D.Afonso V, 1902).
Colhe-se da documentação e das fontes bibliográficas indirectas que as funç¢es de bibliotecário se confundiam nas do cronista, do escrivão ou do secretário reais. Mais, numa carta de quitação passada ao almoxarife do paço de Lisboa, Fernão Dias, no ano relativo a 1450 é registado o pagamento do '' ... feitio de duas mezas que fez para a cassa honde esta a nossa liuraria, que forom postas em ella'' (ANTT, Chancelaria D.Afonso V, Lº. 12, f.42). Ainda, noutra quitação, se faz menção de cem dúzias de pergaminhos entregues ao cronista Gomes Eanes de Zurara, ''pera os teer em guarda na nossa lyurarya que esta em a çidade de Lixb¢a de que ell tem cargo per aluará de mandado'' (Id, ibid, f.42). Uma certa confusão ou indeterminação de funç¢es subsiste também no cargo de ''escrivão de livros'', o que sugere a existência nos paços reais, da oficina de livros, scriptoria, do Arquivo Real, etc. Contudo, no explicit da Crónica da Guiné de Zurara, regista-se ''E acabousse esta obra na liurarya que este Rey dom Affonso fez em Lixboa, dezooito dias de fevereiro seendo scripta em este primeiro uellume per Joham Gonçalves, scudeiro e scripvam dos livros do ditto senhor Rey''.
Teófilo Braga, positivista, ao admitir a existência da Biblioteca Real, nega-lhe a característica de pública, mas apenas com acesso muito restrito, referindo as casas ou estantes, com suas mesas e os livros encadeados ou mesmo aferrolhados (História da Universidade de Coimbra, I, 1892). A indicação de Zurara ter concluído a sua Crónica na livraria do paço, permitiu-lhe deduzir pelos créditos bibliográficos, de algumas das obras lá existentes no tempo de D.Afonso V, às quais se juntariam as do inventário da livraria de D.Duarte e algumas de D.João I. De D.Manuel, D.João III e D.Catarina, conhecem-se os inventários, publicados por Sousa Viterbo (A Livraria Real, especialmente no reinado de D.Manuel, 1901).
A maior ou menor extensão destes espólios permitem concluir, ao longo de mais de cem anos, por uma extrema mobilidade e não coincidência de títulos, por motivos vários, incluindo os de partilhas, ou o que suspeitamos, já de depósito efectivo na livraria real já então distinta das bibliotecas particulares dos reis. *ltimo exemplo disso, na Biblioteca da Ajuda, foi a incorporação das bibliotecas particulares de D.Pedro V e D.Luís (cerca de 8000 volumes) a que o rei D.Carlos procedeu por partilhas entre os herdeiros. Este rei igualmente possuía a sua biblioteca privada, bem como D.Manuel II.
Portanto, poderemos situar à volta de 1450 a formação do primeiro núcleo da Biblioteca Real, em coexistência com a Torre do Tombo e não há notícia da época da sua transferência para os paços da Ribeira que D.Manuel edificou, lugar onde em 1755 desaparecerá, no torreão da Casa do Forte, ampliado por D.João III e Felipe II, junto às casas da *ndia e da Mina, ocupando terrenos das Tercenas e da Judiaria Pequena.
D.João IV amplia-a em muito com a transferência da sua riquíssima Livraria de Música de Vila Viçosa para Lisboa, resguardando-a de um possível ataque espanhol e dotando-a de bibliotecário, geralmente mestre dos cantores da Capela Real. Dessa colecção foi pubicado o repectivo *ndice, de que só se conhece o primeiro volume.
D.João V, com a grandeza que se lhe conheceu, foi o rei que mais se dedicou à Biblioteca Real, servindo de referência para a sua acção a composição feita por Francisco Xavier da Silva (Elogio Fúnebre e Historico, 1750): ''Estimou como verdadeiro sabio os livros mais do que quantas preciosidades lhe comunicou felizmente a fortuna, não se contentando sem os ter no seu próprio Palacio. Havia nelle só hum pequeno resto da Livraria antiga da Serenissima Casa de Bragança; mas o mesmo Rey o Senhor D.João V a augmentou com muitos mil volumes, que mal cabem em huma grandissima sala do edificio chamado o Forte, não obstante estar toda pelo meyo dividida em estantes para se poderem accomodar. Louva¢-se nella as ediç¢es mais raras, e hum grande numero de manuscritos; além de immensidade de livros politicos, e Ecclesiasticos, que fez tirar de todos os Estados de Italia, e entre elles se acha¢ os Diarios Pontificos, Rituaes, e Cerimoniaes, que todos fazem hum avultadissimo corpo. Admiraveis sa¢ tambem as duas Livrarias, que mandou ordenar, huma em o Convento de Mafra, e outra no Collegio dos Padres da Congregaça¢ do Oratorio em Alcantara ....''.
A citação serve para dela se deduzir algo da história da Biblioteca Real, já então instalada na Casa do Forte do Paço da Ribeira (ao que se sabe no terceiro piso), mas de pequeno vulto, essencialmente com o espólio da Casa de Bragança, como dinastia reinante. Permanece a dúvida quanto à localização da Livraria antiga, dos reis de Avis. Pelo mesmo Elogio se sabe que em 1719, D.João V visitou a Torre do Tombo na Alcáçova ''observando tudo com grande satisfaça¢, e curiosissimo exame.'' No ano seguinte, funda-se a Academia Portuguesa de História e uma das sua iniciativas é a que resultou no célebre núcleo de códices de ''Jesuítas na Ásia'' hoje existente na Biblioteca da Ajuda, fundamental para a história do Oriente. Igualmente de Roma e do Vaticano nos vinha outro núcleo de códices, a Symmicta Lusitanica e tal como em Macau, na consulta e cópia sistemática da documentação dos arquivos, formavam um corpus da gesta portuguesa. D.João V repetia os mesmos passos de D.Manuel com a Leitura Nova, cujo acervo vira com tanto agrado na Torre do Tombo. Ao mesmo tempo, em Paris, Viena, Londres e Amsterdão, os seus embaixadores procediam a enormes compras de livros e colecç¢es de estampas de cuja grandiosidade existem indícios seguros, nomeadamente das compras de gravuras efectuadas em Paris. Dessas longas séries iconográficas, apenas um álbum da biblioteca joanina, comprado em Londres, subsistiu e mesmo assim readquirido em leilão (1990) e regressado à Biblioteca da Ajuda. Com alguma propriedade, da colecção iconográfica da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, algumas peças xilográficas de Dürer provieram da Biblioteca Real. Da biblioteca dos Oratorianos ou do palácio de Nossa Senhora das Necessidades, após a extinção das Ordens religiosas no século XIX, dá-se a sua incorporação na Ajuda.
Falecido D.João V em 1750, a Biblioteca Real do Paço da Ribeira pouco tempo depois desaparece com o terramoto de 1755, indo os seus salvados formar nova biblioteca, em casas próprias, junto à ''Real Barraca'' ou paço de madeira no sítio da Ajuda. Poucas bibliotecas sofreram destruição e história tão turbulenta como a Biblioteca da Ajuda, cuja vida acidentada se iria repetir de forma diversa no século seguinte.
A Biblioteca Real reconstituiu-se a partir de diversas proveniências, como as compras das bibliotecas de Nicolau Xavier da Silva, da Casa de Redondo, de José Freire Monterroio Mascarenhas e a de Barbosa Machado, repletas de preciosidades, de códices iluminados, miscelâneas literárias, documentação dos Governos de Portugal, crónicas ou genealogias, além das colecç¢es de folhetos e de livros impressos.
Contudo, em 1811, a Biblioteca é encaixotada e transferida para o Brasil, junto da Corte. O seu espólio, na maior parte (no que se estima em 60000 volumes), formaria a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro . Só devido a um certo zelo é que regressa a Portugal o núcleo de manuscritos da Casa Real. Ocupava então a Biblioteca da Ajuda casas próprias junto ao actual palácio, para onde foi tranferida em 1880. Dela subsistem ainda alguns edifícios, (bem como algum mobiliário), hoje separados, no lado nascente do actual palácio, constituídos pela casa do bibliotecário em que viveu Alexandre Herculano (hoje em dia a cargo da Casa Pia de Lisboa), as casas do denominado ''Pátio da Física'' ou ''Real Gabinete de Física'', (como o nome indica, onde se situava o laboratório de Física dos príncipes, com encarregado próprio) e a ''Sala dos Serenins'' (ocupados pelo actual Arquivo Nacional de Fotografia). Numa extensão intermédia de cerca de quarenta metros existia o corpo principal da Biblioteca Real, constituído por três salas com galerias e um número indeterminado de gabinetes de manuscritos e livros raros.
Em 1813, por alvará régio ordena-se a remessa pelo Desembargo do Paço, das ediç¢es objecto do que viria a ser o futuro Depósito Legal. Igualmente se transferem livros da Impressão Régia.
Com a extinção das Ordens religiosas, a Biblioteca da Ajuda beneficia de duas grandes incorporaç¢es, a da biblioteca dos Oratorianos ou das Necessidades e a dos Jesuítas, do Colégio dos Nobres e Santo Antão, de onde proveio o ''Cancioneiro da Ajuda'', atingindo no tempo de Alexandre Herculano (1857), cerca de sessenta mil volumes. Além disso a Biblioteca incorporou em épocas distintas espécimes de Queluz e do paço da Bemposta, bem como o valioso núcleo de música da Casa da epera e Capela Real
Deste período, que vai de 1756 a 1880, citam-se, entre outros, os seguites directores: José Caetano de Almeida, Feliciano Marques Perdigão, Francisco José da Serra Xavier, Alexandre António das Neves Portugal e finalmente Alexandre Herculano, o qual não chegou a assistir à transferência da biblioteca para o actual palácio.
Alexandre Herculano é nomeado em 1839 por D.Maria II encarregado da Real Biblioteca como Bibliotecário-Mor, onde se manteve em funç¢es até 1877 e da sua longa acção foi publicado um minucioso estudo por Mariana A. Machado Santos, (Alexandre Herculano e a Biblioteca da Ajuda, 1965), directora da Biblioteca (1954-1974). Aqui escreveu Herculano parte da sua obra e da sua documentação publicou o ''Livro Velho de Linhagens III'' apenso ao Cancioneiro da Ajuda, bem como lhe proporcionou fundamentação para a elaboração da ''História da Inquisição em Portugal''. Do muito que se sabe de Alexandre Herculano, retiraremos apenas a denominação de ''Eremitério'' ao referir-se à sua casa e à Biblioteca contígua.
Pouco depois de D.Luís ter sido aclamado, em 1861, começa a pensar-se na transferência da Biblioteca para o ''Palácio Novo'', ideia que muito desgostou Herculano, levando-o a afastar-se gradualmente da Ajuda para Val-de-Lobos. Não chegou a ver a actual Biblioteca, inaugurada em 10 de Junho de 1880, dia de Cam¢es, já com um novo director, o médico da Casa Real, José de Magalhães Coutinho.
O último director dos tempos da Casa Real foi o escritor Ramalho Ortigão (1895-1910), injustamente esquecido nas suas qualidades de grande bibliotecário e organizador da actual Biblioteca, cujo trabalho ainda hoje está patente nos inventários, tabelas e catálogos que organisou, dando continuidade à gerência de Herculano. Sob a sua direcção foram incorporadas as bibliotecas particulares de D.Pedro V e de D.Luís. Com o seu afastamento em 1910, no advento da República, a Biblioteca entra numa letargia de longos anos, chegando a estar encerrada e perdendo parcialmente o seu estatuto orgânico e funcional.
Há cerca de cinquenta anos, o director Frederico Perry Vidal (1936-1953), eminente genealogista, bem avaliava a situação da Biblioteca, retomava as ideias de Alexandre Herculano e defendia em relatório dirigido a Júlio Dantas, inspector superior das Bibliotecas e Arquivos, a transferência da Biblioteca para edifício próprio, proporcionando um retorno à sua grandeza e importância, sua conservação e ampliação, evitando o apagamento, desinteresse e o abandono a que a submetiam.
Séculos passados, de que nos autorizamos a identificar com a história da Biblioteca da Ajuda, a livraria de D.Afonso V, longa de pequenas e grandes tragédias, de trabalho insano, surdo e dedicado de geraç¢es de bibliotecários, arquivistas e historiadores, de dezenas de milhares de livros perdidos, recuperados e emigrados, a Biblioteca da Ajuda detém um acervo bastante importante que vale a pena enumerar ao longo dos seus três quilómetros de prateleiras e dos seus cento e cinco mil espécimes, alguns bem preciosos, como o Cancioneiro da Ajuda, o Livro das Traças de Carpintaria, Da fábrica que falece a Cidade de Lisboa (Francisco d´Holanda), roteiros, atlas, bíblias, espécimes musicais, entre outros.
Dos Manuscritos, detém 2320 códices e cerca de 33000 documentos avulsos, com datação extrema entre os séc. XIII e XX. Inclui 43 códices iluminados, roteiros e atlas, bíblias, miscelâneas, além de uma importante coleção de crónicas (séc. XV a XVIII), genealogias, os 226 códices da Symmicta Lusitanica e 61 códices dos Jesuítas na Ásia (XVIII). Os manuscritos musicais compreendem 2950 códices e 10200 avulsos, constituindo a nível internacional um dos mais importantes núcleos de música de câmara e ópera do séc.XVIII.
Dos Impressos, consta de 16000 monografias e 11000 volumes de periódicos distribuídos por 1700 títulos. No Livro Antigo, além de 60000 volumes dos séc. XVI a XVIII, possui uma importante colecção de 180 incunábulos e uma colecção de livros raros com 500 volumes (XVI, XVII e XVIII), sendo alguns, exemplares únicos. Inclui uma importante colecção de atlas holandeses, franceses e alemães (XVI a XVIII) e uma colecção de folhetos de cerca de 9000 exemplares.
Ainda, as colecç¢es de Cartografia, Iconografia e Fotografia, cada uma com cerca de 2500 peças; particularmente importante a documentação fotográfica do século XIX e príncipios do século XX.
Modernamente, a Biblioteca da Ajuda recupera e adapta-se ao desenvolvimento das novas ténicas biblioteconómicas, arquivísticas e de conservação, não perdendo de vista a sua verdadeira importância cultural e patrimonial de entre as grandes bibliotecas portuguesas, bem como um gradual, ainda que modesto, reconhecimento internacional.
Reconhece-se que a par das suas características de biblioteca de conservação ou erudita, a par dos espécimes valiosos que possui, se deve encarar exaustivamente a sua função documental ou propriamente descritiva de todo o acervo bibliográfico e arquivístico, abstraindo do peso relativo dos espécimes em termos da sua importância ou raridade. Por outro lado, a sua difusão e acesso encontra-se finalmente muito facilitada pelos meios técnicos de que dispõe, nomeadamente de informatização e microfilmagem sistemática dos seus núcleos e colecções.