quinta-feira, novembro 26, 2009

Antero de Quental e Alberto Sampaio. A amizade na diferença - Ana Maria Almeida Martins

Quando Luís de Magalhães teve a ideia de consagrar a Antero de Quental um In Memoriam, um dos primeiros nomes que lhe ocorreu para colaborar nesse livro foi o de Alberto Sampaio, porque conhecia bem, e fora, aliás, testemunha pessoal, da grande amizade que sempre os unira.
A contribuição de Alberto Sampaio, o ensaio "Recordações", esteve para ser, inicialmente, uma carta dirigida ao próprio Luís de Magalhães, ideia que veio a abandonar, não sem antes confessar que sentia grandes dificuldades na elaboração desse escrito, o que não era de estranhar dado o estado de consternação em que se encontrava depois de ter tido conhecimento do terrível desenlace do dia 11 de Setembro de 1891 em Ponta Delgada.
A uma pergunta de Luís de Magalhães acerca da correspondência de Antero que teria guardado, respondeu-lhe: "possuo grande quantidade, algumas muito notáveis. Todavia, apesar da sua importância, estou certo que se não podem publicar, pelo menos nesta geração, visto o tom de intimidade. Quando tivermos de nos encontrar eu lhas mostrarei, e penso que será da minha opinião".
Veio, porém, a inserir alguns excertos, precisamente no artigo para o In Memoriam, suprimindo-lhe certas passagens. "Nenhuma supressão altera porém o sentido. Entendi que devia fazê-lo atendendo a que não foram escritas para o público".
Quis o destino, nestas coisas fundamentais e decisivo, que estas cartas (ou parte delas) viessem a ser conhecidas só cerca de um século mais tarde. Elas revestem-se de uma característica que as torna únicas no conjunto epistolográfico anteriano. Além deste, não existe por enquanto mais nenhum, ao mesmo destinatário que, tendo começado ainda em Coimbra, durante a época universitária, se prolongue por quase trinta anos, até cerca de um mês antes da morte.
São, e Sampaio bem o reconheceu, cartas verdadeira-mente pessoais e íntimas. Aqui e ali, surgem factos em absoluto ignorados dos seus biógrafos, nomeadamente de José Bruno Carreiro, que não se poupou a esforços para as conseguir, porque pressentia a sua importância.
A primeira e mais surpreendente revelação é a intenção de assentar praça como voluntário nos Zuavos Pontifícios, do Vaticano, no Verão de 1868: "Que humorismo profundo em todos os contrastes de uma tal vida. Ateus a manterem guarda ao Vaticano! Socialistas a defenderem o poder temporal do Papa!"
É sabido que nunca Alberto Sampaio se assumiu como socialista e as propostas do amigo para que o acompanhasse a Roma ("o mundo originalíssimo de aventureiros" que corria a defender the old gentleman, como os ingleses chamavam ao Papa) não só não o entusiasmou, como o terá deixado perplexo. Tão perplexo, ante essa projectada aventura para que fora convidado, que se apressou a escrever para São Miguel, ao seu antigo condiscípulo de Coimbra, Francisco Machado de Faria e Maia, perguntando-lhe se Antero não teria enlouquecido. Conhece-se a resposta deste: "Tenho a participarte que o Antero não endoideceu. Vive aqui sofrendo do estômago, um
pouco incomodado do sistema nervoso, mas a cabeça regula bem, e tão bem como era de desejar que regulasse a dos que o fazem passar por doido". Resta saber se esse boato chegou a correr, ou se o próprio Alberto Sampaio o terá inventado para, mais afoitamente, poder indagar do estado mental do seu amigo.
Realmente, Antero e Alberto Sampaio eram muito diferentes um do outro. Em Coimbra, é certo, vamos encontrá-los juntos em diversas ocasiões: ambos presos por desordens de caloiros; presentes na pequena revolta vitoriosa da Sala dos Capelos, com assinatura conjunta no Manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra à Opinião Ilustrada do País, e no êxodo para o Porto durante a Rolinada.
Mas, uma vez terminado o curso, com o regresso a Guimarães, Alberto Sampaio "assentou". Por isso os projectos romanos do seu amigo (quando as verduras da mocidade já deveriam ter terminado) lhe pareceram tão absurdos que logo os atribuiu a algum acesso de loucura e nunca, mas nunca, pensou em os divulgar. Assim como não deixou que viesse a público o projecto espanhol, do qual se conhece por enquanto tão pouco. Diz Antero numa carta de finais de 1868: "Há quatro ou cinco dias que estão abertas negociações com democratas de Madrid (Partido Castellar) para me receberem como escritor português no jornal democrático e ibérico que vão fundar... Para dar peso à proposta publicar-se-á brevemente um panfleto meu, com o título Portugal Perante a Revolução de Espanha no sentido das ideias daquela gente, que são também as minhas, iberismo com o federalismo de toda a península... Acho que resolvida esta questão vamos muito melhor, o que não quer dizer que não vamos ainda com ela mal resolvida. Vamos sempre, porque eu lá coloco-me no jornalismo democrático facilmente".
"Vamos sempre" - onde? Eis o que Alberto Sampaio nunca quis esclarecer, talvez porque nunca tivesse tido intenção de ir.
A consciência do proprietário, do terratenente, foi decisiva para Sampaio. Desde cedo a lavoura o interessou de tal modo que a ela se veio a dedicar em detrimento do seu curso de Direito.
Em Antero, pelo contrário, essa consciência, desperta numa das suas viagens à ilha natal, inspira-lhe também sentimentos de proprietário, é certo, mas que nada tinham a ver com organizações agrícolas. Explica-a numa carta a Germano Meireles, de Abril de 1866: "Mas eu nesta viagem experimentei uma coisa nova para mim: a consciência do proprietário. Pondo os pés em chão meu, alegrei-me por nós, porque vi nesses palmos de terra que me hão-de pertencer, não uma riqueza, mas um refúgio para nós - nesses campos um deserto para onde conduzirmos os nossos deuses exilados"
Que cedo a agricultura se transformou na principal actividade de Alberto Sampaio, não o desconhecia Antero. Assim o demonstra ao escrever conjuntamente aos seus amigos da cidade berço, estranhando-lhes a falta de notícias: "O vosso silêncio fez-me pensar que não estareis por essas regiões ou então que vos ocupais em resolver praticamente os mais altos problemas da agricultura e economia rural". E ao longo das cartas abundam as alusões a assuntos agrícolas: quando se regozija com a pujança dos bogangos (cujas sementes certamente providenciara) " que como bons ilhéus, não querem fazer má figura diante das hortaliças continentais", quando pede informes sobre a sarradela, para um seu amigo agrónomo francês, ou ainda, já em Vila do Conde, na altura de aformosear o seu "quintalório" de onde banira couves e nabos e se propõe convertê-lo numa espécie de jardim pomar: "Já cá encontrei uma latada, duas laranjeiras e um pessegueiro; mas ainda haveria lugar para mais cinco ou seis árvores de fruto, assim como pelos muros alguma trepadeira florente. Poderás tu trazer-me algumas sementes ou estacas dalguma
coisa que sirva neste caso?... O Oliveira Martins fornece planta de morangos e umas canas ornamentais que dão plumas. Mas em nada se mexeu ainda, esperando a tua vinda, e o auxílio e conselho - ope et consilio - dum jardineiro e em geral agrícola da tua força!
E não se devem esquecer as referências aos vinhos minhotos, cuja oferta tantas vezes agradece e elogia: "Já libei os teus néctares minhotos. Como originalidade, ponho o clarete acima de tudo: criaste nele um tipo. Ao seco, acho-o seco demais, e no género fino, prefirolhe o bastardo. O outro, que não traz nome, também me agrada. Em conclusão: como tipo, ponho o clarete em primeiro lugar, e ponho em último o seco que ainda assim se bebe com gosto. De tudo vou libando e degustando, mas não segundo o teu programa, que parecia feito para a mesa dum epicurista! Ora a minha é monacal!"
Ou ainda: "Do teu vinho, que já tenho libado, dir-te-ei maravilhas. É em tudo digno da reputação que no ano passado alcançara e que fica agora inabalável. Este teu produto prova uma coisa, e é, que se os lavradores do Minho, em vez de estragarem a uva fazendo uma zurrapa de bárbaros, fizessem daquilo, podiam criar um tipo de vinho para ser muito nomeado, e dar-lhes bastante interesse. Verdade é que o que eles fazem, tal como é, vendem-no e bebem-no perfeitamente. Mas é incrível como nós estragamos as nossas matérias-primas!"
Bem cedo Antero se apercebeu que o feitio calmo e ponderado do seu amigo lhe era salutar, transmitindo-lhe uma serenidade benéfica. Quando da viagem para Paris, na hora da despedida, assim o deixa transparecer: "De todos os meus amigos, parece-me que a nenhum escrevo nesta hora com tão bom ânimo como a ti, porque a nenhum deixo num estado de espírito que me inspire tanta confiança e em circunstâncias dentro e fora de si, que tanto auxiliem. O velho lirismo, a visão do ideal antigo persegue-te menos; tens mais paz no temperamento e a experiência tem-te aproveitado mais".
E quando o projecto parisiense começou a ruir, a carta mais angustiada e o pedido de socorro mais aflitivo vêm para Guimarães. A desilusão é aí tão sentida, tão sofrida, tão real, que Sampaio não hesitou em publicar alguns excertos no In Memoriam, porque nessa carta, Antero, ainda na verdura dos seus vinte e cinco anos, já deixa transparecer a dicotomia em que se debaterá durante toda a vida: entusiasmo depressão, actividade inércia, esperança desespero: "Escrevo-te do fundo da mais profunda tristeza" e não se envergonhava de o confessar ao amigo. Paris desiludira-o completamente. Nada lhe interessava naquela louca capital do Segundo Império que se preparava afanosamente para a Exposição Universal de 1867. E não podia honradamente aparecer à família senão passado um ano, pois não queria que supusessem que a tentativa de emprego em que se empenhara não passaria de uma farsa de rapaz para apanhar dinheiro e viajar. Por isso perguntava a Alberto Sampaio e ao irmão se o poderiam albergar durante um ano
ou associá-lo aos trabalhos de lavoura até ele poder desassombradamente desembarcar em Ponta Delgada. Pedia-lhes por fim que não comunicassem a ninguém, nem mesmo aos amigos mais próximos, o conteúdo daquela carta.
O pedido foi prontamente atendido e Antero regressou incógnito, para se restabelecer daquela profunda depressão, na quinta de Santa Ana perto do Mosteiro da Costa em Guimarães. E durante toda a sua vida pode sempre contar incondicionalmente com os seus amigos Sampaios. Em 1875, no período aguda da doença, quando os médicos desesperavam de o curar e já só lhe receitavam viagens, ele pede informações acerca da possibilidade de estanciar em Braga ou Guimarães durante uma temporada, preferindo a cidade berço, mas julgando que a dos arcebispos estaria melhor apetrechada em termos hospitalares. Mas a resposta vem ao encontro dos seus desejos: "Decididamente o berço da monarquia é uma terra de grandes recursos, e compreendo e admiro a profunda sagacidade de que deu prova o conde Dom Anrique escolhendo-a para a sua corte! Reconheço também gostosamente que têm mais utilidade do que eu julgava as confrarias, e que é grande o seu espírito de tolerância, pois assim abrem os braços a um livre pensador inválido. Abrirei de ora avante, nas minhas invectivas ímpias, uma excepção honrosa em favor da Confraria de S. Domingos".
Nestas cartas, ao contrário de outras, principalmente as que dirigiu a Oliveira Martins, Jaime Batalha Reis e João Lobo de Moura, raramente os assuntos literários têm primazia e, muito menos, os políticos. É neste capítulo que as divergências entre Antero e Alberto Sampaio são mais evidentes e por isso ele evita-as ou menciona-as muito superficialmente. Apenas quando ataca os republicanos é mais loquaz, embora as razões que o levam a atacar a República não sejam seguramente as mesmas de Alberto Sampaio que foi sempre um convicto adepto da Monarquia.
Para Antero a questão política, porém, desaparecia perante a questão social e económica e, muito principalmente, perante a questão moral. Num artigo publicado no Pensamento Social de Fevereiro de 1873, A República e o Socialismo, em que defendia a sua posição perante a Primeira República espanhola, já ele afirmava: " Se a República não for mais do que a continuação da monarquia sob outro nome, a monarquia menos o monarca; se representar as mesmas tradições administrativas e financeiras, as mesmas influências militares e bancárias; se fizer causa comum com a agiotagem capitalista contra o povo trabalhador; se não for mais do que uma oligarquia burguesa e uma nova consagração dos privilégios pelos privilegiados ¾ em tal caso diremos que nos é cordialmente antipática essa pretendida república de antropófagos convertidos.
Se não for tão longe no caminho da reacção, mas se se contentar apenas com meias reformas sem alcance nem futuro, com uma meia descentralização, uma meia liberdade, um meio militarismo e um meio capitalismo; se for incolor, frouxa, indecisa, declamatória e pasteleira, para tudo dizer com uma palavra sagrada - nesse caso não diremos que somos hostis a essa pseudo-república de meninas de colégio; mas a nossa simpatia será apenas a suficiente para lhe rezarmos um Padrenosso por alma.
Se, finalmente, a república espanhola, evitando igualmente as violências da ditadura vermelha e a funesta aliança dos conservadores endurecidos, aplanar com mão firme um largo terreno de liberalismo em que se possam encontrar todos os partidos médios, não para apenas coexistirem inertes, incomodando-se uns aos outros, no meio da impotência geral, mas para cooperarem activamente, com mútuos sacrifícios e justos compromissos, na gradual reforma das instituições não só políticas mas económicas; se desta alta conciliação sair a anulação, pela própria impotência e não pela força, dos partidos extremos tanto revolucionários como conservadores; se a república, começando por vagamente democrática, se for definindo dia a dia como social, e isto não pela iniciativa autoritária, mas pela evolução dos interesses dentro de uma forma política, que não embarace uma única autoridade justa, nem pretira um único direito, tenha ele o nome que tiver ¾ nesse caso diremos que essa república liberal, progressiva e reparadora não é ainda inteiramente a nossa, porque a nossa é o Ideal, mas calorosamente mostraremos que simpatizamos com ela do coração, porque muito bem sabemos que o nosso Ideal Completo não é para hoje, nem mesmo para amanhã, e não pretendemos que ninguém no-lo realize de um dia para o outro, mas só exigimos garantias sérias para que nós mesmos o possamos ir realizando passo a passo e hora a hora, lentamente, mas sempre".
Assim se compreende a sua tomada de posição face aos republicanos portugueses, que sempre classificou de garotos e de raça pérfida. Sabendo portanto dos ideais fortemente anti republicanos do seu amigo Sampaio, sentia-se à vontade para bem expressar a sua opinião:"Dir-te-ei que o republicanismo avulta de dia para dia. Mas que republicanos! É um partido de lojistas, capitaneado por bacharéis pífios ou tolos. É quanto basta para se lhe tirar o horóscopo. Duma tal república só há-de sair a anarquia e a fome!".
Alberto Sampaio não participou nas Conferências do Casino, nem iria participar nas que se iam seguir, mesmo que elas não tivessem sido proibidas e o seu nome não consta de qualquer prospectoprograma nem, que se conheça, em nenhum protesto contra o seu encerramento compulsivo. Foi certamente convidado. Só que o clima pseudo-revolucionário que as Conferências aparentemente vinculavam não o seduzia.
Nem as palavras de Antero, nem a sua autoridade moral, foram suficientes para o sossegar: "Pedimos o concurso de todos os partidos, de todas as escolas, de todas as pessoas que, ainda que não partilhem as nossas opiniões, não recusam a sua atenção aos que pretendem ter uma acção - embora mínima - nos destinos do seu país, expondo pública mas serenamente as suas convicções e o resultado dos seus estudos e trabalhos". Sampaio temia o poder das classes populares e era claramente pela repressão. Numa carta de 1894, a Luís de Magalhães, interroga-se: "Onde irá ter tudo isto? Se a ordem aparente se perturba aqui ou ali, a revolução social rebentará como um vulcão, e depois com todos os horrores da barbária - a punhal! Este trágico fim do Carnot mostra bem o que acontecerá no dies irae quando as classes populares se desencadearem furiosas sobre a civilização que elas não amam nem compreendem".
A verdade é que Carnot fora apunhalado tal como Henrique IV e outras cabeças coroadas e essas mortes não foram desencadeadas pelas classes populares furiosas. Alberto Sampaio não lera, certamente, o excelente artigo que Eça de Queirós escreveu para a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, sobre a morte do Presidente da República Francesa, “A Morte e o Funeral de Carnot”, e já esquecera tudo o que Antero pensava sobre as classes populares que bem cedo, aos 18 anos, defendera no artigo “A Ilustração e o Operário” publicado no Cisne do Mondego em 1860: "Se o rico pode em parte suprir pelo ouro a ciência que lhe falece, o pobre e deserdado só nela pode contar como única e delicada amiga. Ao rico, afeiçoou uma educação primorosa, transmitindo-se através de séculos. Ao operário cegam ainda as sombras de séculos de fanatismo, que lhe pesaram no espírito. Um é já filho duma civilização avançada; o outro, deserdado, sai apenas das faixas infantis da natureza".
Seja como for, Alberto Sampaio era visceralmente contra estes ideais anterianos e contra as soluções que o seu amigo preconizava e defendia: "Não somos exaltados nem impacientes, se entendemos que socialismo é sinónimo de liquidação social, entendemos também que liquidação social é sinónimo de reformas e não de subversão, de livre iniciativa e não de ditadura, de conciliação e não de extermínio e por isso mesmo que não prescindimos de liquidação social é que a queremos gradualmente equitativa, exactamente para que ela seja completa e definitiva".1
A insegurança social finessecular empurrava Alberto Sampaio, cada vez mais, para um radicalismo de opiniões que ele participava a Luís de Magalhães, um dos seus interlocutores preferidos. É, aliás, através desta correspondência que, inesperadamente, nos surge um Alberto Sampaio politicamente muito empenhado e, até, quem diria, interveniente bastante activo. "Por toda a parte o roubo, as falsificações, e sobretudo a desfaçatez. Se a crise financeira produzir um homem que saiba governar, venha ele amanhã. Antes, não creio que se possa arrostar com os descarados e os ladrões: mas dado um momento de angústia, então é possível esmagar os malandros. Caberá ao João Franco varrer toda esta imundice? Será ele assaz ousado para entrar neste caminho sem vacilar? Precisa de grande coragem e resolução, para não lhe enredarem os passos, o círculo de relações em que tem vivido e as suas antigas preocupações. Parece-me que só pode resolver o problema o homem que tenha uma única religião e um sentir - A Razão de Estado - Com este gládio, em pouco tempo põe tudo direito".
Começa aqui a desenhar-se a esperança e a admiração crescente de Alberto Sampaio pelo futuro ditador João Franco, esperança e admiração partilhadas igualmente por Luís de Magalhães. É desta convergência de opiniões que irá nascer o movimento dos Endireitas analisado já por Manuel Villaverde Cabral no seu Portugal na Alvorada do Século XX como o embrião de "uma reforma autoritária e conservadora do Estado liberal, em suma, um movimento comum em direcção à superação do Liberalismo, mediante a rendição crescente às tendências corporativas e fascizantes que convergem, definitivamente, depois de 28 de Maio de 1926".
Mas a designação de Endireitas teve o seu baptismo na imprensa e de forma jocosa e pejorativa. Os jornalistas só inventaram a designação para dela troçarem. E Alberto Sampaio, indignado com o que ia lendo, escreveu mais uma vez a Luís de Magalhães, sem poder imaginar como esse longo desabafo nos surge hoje quase como a certidão de nascimento desses mesmos Endireitas: "A visita a Moreira, (casa de Luís de Magalhães) como todos sabemos não teve nenhum motivo partidário, ninguém pensou em tal, nem de política lá se tratou, a não ser esta meia dúzia de palavras obrigatórias entre os portugueses instruídos. O que nos prendia a atenção era a leitura do manuscrito do Mouzinho que revelava um Homem de Estado, mas também é fora de dúvida que entre os três hóspedes e o dono da casa - eu fico de fora porque nunca exerci funções públicas - entre todos havia uma forte afinidade política. Não era precisa a discussão para se patentear, nem é também das que se discutem, mas das que rebentam espontâneas na primeira ocasião oportuna. Por outro lado (tanto quanto sei de política, pois as minhas congeminações são
outras) creio que está eminente uma mudança profunda na nossa vida pública. Os velhos partidos como os velhos processos estão em vésperas de acabar: e se as circunstâncias e condições da actualidade nos não forem totalmente adversas, a vida nacional renovar-se-á, mas governando-se dum modo diferente... A denominação de Endireitas não podia aparecer senão quando o aleijado está ameaçado de não mais se poder mexer e quando se apontam homens de boa vontade, capazes de reduzir os aleijões e pôr a andar outra vez o das pernas quebradas... Se o doente reconheceu a incapacidade dos médicos profissionais, encontrará nos Endireitas os pulsos hercúleos dos seus antigos ilustres conterrâneos de Rio Tinto".
Os intervenientes nessa reunião de Moreira da Maia, a que alude Sampaio, nesta carta de 1 de Fevereiro de 1899, são, além dele próprio, João Franco, Jaime de Magalhães Lima, o anfitrião e Mouzinho de Albuquerque que fora ler aos amigos o manuscrito do seu livro sobre Moçambique.
Sete meses haviam decorrido sobre a demissão do herói de Chaimite, que Alberto Sampaio, em carta de 21 de Julho, igualmente a Luís de Magalhães, comentara asperamente, considerando significativo o destempero governativo e de parte do público que deixara passar o caso sem o mais pequeno protesto, "ele que ainda ontem o aplaudia freneticamente. Pode haver alguma coisa mais desconsoladora que tudo isto? A gente chega naturalmente ao último pessimismo: mas a verdade é que se o povo não fosse assim, não haveria governo nem rei como os que temos".
Mouzinho de Albuquerque aparecia aos olhos de muitos como o Messias salvador, mas os messias, como dissera Antero, gastam-se se não entram logo em cena a fazer milagres. Ora milagres não houve. Os Endireitas não logravam grandes sucessos nem adesões, apesar dos seus nomes, individualmente tão prestigiados e, no dia primeiro de Janeiro de 1901, Sampaio, desiludido, escrevia mais uma vez para Moreira da Maia: "A exclusão dos Endireitas de entre os novos pares é um facto tão notável que não posso deixar de conversar consigo a respeito dele por alguns instantes. Para lhe falar com franqueza não fiquei surpreendido. Os Endireitas são hereges, que é necessário afastar e deixar na penumbra, embora com boas maneiras, e tirando deles todo o proveito possível. Pena foi que auxiliassem o governo nas eleições. Se a gratidão não fosse demasiadamente rara, devia esperarse desta vez uma excepção: mas quem pode contar com ela? "Águas passadas não movem moinhos" diz o povo! agora trata-se de moer de novo e não de moagens velhas. Posto de lado o que há de feio e indecente no procedimento hintzeano, o resultado no ponto de vista político parece-me excelente, porque ajuda a estabelecer com precisão uma linha divisória. E para os Endireitas tudo quanto tenda a delimitar o seu grupo tanto melhor". E nesse dia, o primeiro do século, as esperanças de Alberto Sampaio viram-se ostensivamente para João Franco: "Deus queira que lhe esteja reservado e aos seus amigos inaugurar no novo século uma nova vida política na nossa terra".
Em Dezembro de 1902, com Mouzinho fora da política e da vida, Alberto Sampaio é um franquista convicto, ou não fosse João Franco um Endireita, e os Endireitas, como Sampaio ingenuamente supunha, só se moviam "impulsionados pelos interesses superiores da nação". Quantos Endireitas? apetece perguntar.
Nos anos que se vão seguir, com os republicanos a aumentar de número sem que uma opinião forte "os metesse na ordem", como lamentava Sampaio, a demissão de usar da força por parte daqueles que a detinham parecia-lhe uma loucura. Em 1905, na sequência das lutas internas na Rússia, interrogava ele Luís de Magalhães: "Não lhe parece que o czar perdeu a melhor das ocasiões de resolver a questão socialista pondo-se à frente da revolução? Tornava-se certamente o maior potentado do mundo e deixaria na História o mais belo exemplo do poder de um homem. Agora não sei o que será. Trevas, lutas de classes por quanto tempo!"
Como é compreensível a sua alegria quando finalmente João Franco se tornou primeiro ministro! Durante a visita que o Presidente do Conselho fez ao Porto, Sampaio desceu à cidade invicta para
participar nas festividades e de lá escrever a Luís de Magalhães, o recém nomeado senhor ministro dos Negócios Estrangeiros, porque os Endireitas tinham afinal conseguido lugar de destaque entre os vencedores: "Cheguei no sábado. Vim prestar aos meus amigos a minha insignificante homenagem.
Da recepção cheia de espontaneidade, não lhe falo, porque já terá dela notícias circunstanciadas. Deixe-me todavia, notar alguns incidentes característicos. No fim da conferência, ouvi a um popular a seguinte frase - "O homem quer fazer disto qualquer coisa". Estas palavras mostram que está ganha grande parte da confiança da população, o que é tudo, porque sem ela não pode haver governo reformador. Rasgou-se o delgado véu que separava o Franco dos portuenses. A sua sinceridade, a sua forte e expansiva individualidade, lançou-lhos nos braços. À saída de casa do José Novais, um desconhecido, entre popular e burguês, com quem abalroei, gritou me: "E digam lá que o Franco não tem aqui amigos?" E ao chegar a minha casa, dum grupo de sobrecasacados saía esta exclamação: "Quê? pois o presidente do conselho falou ao povo das janelas?"
A visita tomou assim um carácter muito diverso da norma usual. Dir-se-ia que pela primeira vez as gentes fraternizavam com os ministros; e não fique sem se notar a tipóia de praça que os levou em parte do cortejo. Viu já porventura alguma coisa menos conselheiresca numa recepção destas?
No bota fora, na estação de São Bento, por mais esforços que eu fizesse não consegui atravessar a multidão compacta que cercava os nossos amigos e partiram sem eu lhes poder dar o adeus da
despedida".
Se Antero pudesse ter lido esta carta, como teria sorrido perante a santa ingenuidade e, o que será menos desculpável, a falta de um conhecimento mínimo do que é a reação das turbas quando bem manipuladas, por parte do seu amigo Alberto.
Menos de um ano depois, Alberto Sampaio já não elogiava Franco nem a sua "forte e expansiva personalidade". Não deixa de espantar como é que homens de cultura como ele podiam cair na esparrela do populismo e do individualismo do salvador da pátria. Mas caiam. Felizmente também, os salvadores não o são por muito tempo.
Luís de Magalhães deixou o Palácio das Necessidades tão magoado que nem quis receber a condecoração-consolação que o rei lhe reservara e Sampaio, em Agosto de 1907, indignava-se contra uma lei franquista, afinal uma lei justa mas cujas consequências lhe eram desagradáveis e adversas: a lei do descanso semanal. "Mal pensada, sem conhecimentos da vida nacional, feita talvez só com o propósito de angariar simpatias populares, está destinada a ser um caso grave. Alterar os costumes com leis é remar contra a maré. Já era tempo de estar corrente e moente que as leis não são mais que costumes escritos, e quando não os exprimem são letra morta".
Para os camponeses e operários é que esta lei não foi certamente letra morta. Mas quanto esforço, quanta humilhação, quanta demissão dos seus direitos, até que ela se tornasse realidade. Quantos senhores da terra a não cumpriram durante tantos anos.
Mas a ditadura de Franco caiu. Todos acabam por cair, porque, como escrevera Antero: "Não é na substituição da ditadura de Sila à de Mário, da de Napoleão à de Robespierre, da de Espartero à de Isabel II que está o segredo das revoluções, mas na extinção total da ditadura fosse ela a de um santo, da tirania fosse ela a de um deus".2
Após o regicídio, Sampaio desiludiu-se de vez com a sua fugaz incursão pela política. Antero estava presente nas suas recordações quando escreveu: "Por mim não creio em revoluções. Os homens governantes podem mudar, mas a intelectualidade fica a mesma, a que tinha sido. A respeito da decadência dos povos de línguas românicas, estou cada vez mais convencido que o mal lhes provem do catolicismo que é a religião de todos. A igreja católica, com o excesso de disciplina, partiu-lhes a energia intelectual e moral. Pobre gente! Donde lhes virá a salvação".
Afinal acabou por concordar com Antero e com as conclusões a que ele chegara tantos anos antes nas Causas da Decadência dos Povos Peninsulares.
Já poucos meses lhe restavam de vida. A sua obra de historiador estava concluída e títulos como A Propriedade e Cultura no Minho e Vilas do Norte de Portugal são essenciais para o esclarecimento das nossas origens históricas. Não foi um génio, como Antero, e tinha plena consciência desse facto. Quando da publicação do In Memoriam, após ter lido o infeliz ensaio de Sousa Martins, expressou, indignado, a sua opinião: "A coisa parece-me uma sebenta para uso dos seus estudantes. Não creio que seja deprimente para o carácter de Antero porque se não houvesse nevropatas, Schiller, Goethe e outros que tais, ficava o mundo povoado de Sousas Martins, o que seria de a gente morrer de tédio".
Ao tomar conhecimento da tragédia de 11 de Setembro de 1891, escreveu a Oliveira Martins: "Enfim acabou-se o nosso santo amigo e com ele vai uma boa parte de nós mesmos".
Só que ambos continuam entre nós e a oportuna comemoração conjunta que a Sociedade Martins Sarmento organiza é bem o testemunho da imortalidade que ambos alcançaram.

1 A República e o Socialismo.
2 Antero de Quental, "Portugal Perante a Revolução de Espanha" in Prosas, Vol II,
Imprensa da Universidade de Coimbra, 1926.

BIBLIOGRAFIA
Antero de Quental ¾ In Memoriam, Mathieu Lugan Editor, Porto, 1896.
Quental, Antero de, Cartas I e II, Int., Org. e notas de Ana Maria Almeida Martins, Univ. Açores/Ed. Comunicação, 1989.
Cabral, Manuel Villaverde, Portugal na Alvorada do Século XIX, Lisboa, 1979.
Queirós, Eça de, "A Morte e o Funeral de Charcot", in Ecos de Paris, Lello & Irmão, Porto.
Espólio de Luís de Magalhães (Esp/2) depositado na Área de Espólios da Biblioteca Nacional de Lisboa. (cartas de Alberto Sampaio a Luís de Magalhães)

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