terça-feira, março 17, 2009

Crítica ao livro «Madeirenses Errantes de Ferreira Fernandes - António de Nogueira Vasconcelos

Anál. Social n.175 Lisboa jul. 2005


Ferreira Fernandes, Madeirenses Errantes, Lisboa, Oficina do Livro, 2004, 283 páginas.



O livro constitui o desenvolvimento do artigo inserido na Focus (12, 2000, pp. 32-42)1. Tem cinco partes distintas, uma das quais bibliográfica. O autor diz ter consultado «livros e artigos» sobre Kalley sem os registar. Não há introdução nem índice onomástico ou remissivo. As reproduções não contêm identificação da fonte e do mapa-mundo desfocado, cuja cartografia não corresponde ao século XIX. O livro é difícil de classificar. Há conceitos cujos termos têm significações diferentes, v. g., «madeirenses errantes». Poder-se-á dizer dos madeirenses que estes são «errantes» em matéria de fé? Há analogia com o caso dos judeus portugueses? Se houve «madeirenses errantes», isto é mau ou bom? Este caso diz respeito às economias do Atlântico e do Pacífico, ao ciclo do açúcar e ao grupo específico de madeirenses, 2000, aproximadamente, nenhum outro. Os madeirenses emigram, não por serem «errantes», nem porque issofaça parte do seu folclore. Não há «sagas». Eles emigram por motivos de ordem económica e confessional, na sequência das crises agrícolas que afectaram as suas actividades ao longo do século XIX, com o oídio e a filoxera, beneficiando do envolvimento directo dos agentes britânicos, da crise de mão-de-obra nas Antilhas Britânicas, com economias em contraciclo durante a industrialização. É também neste período que se dá a «Potato Famine» na Irlanda (anos 1837 e 1845-1847). Eles tornaram-se protestantes com Kalley. O caso é paradigmático. Em Portugal assiste-se no século XIX ao protestantismo sem reforma protestante.
Trata-se do pós-revivalismo (anos 40 do século XIX aos anos 50-60 do século XX), cujos desenvolvimentos se devem a Kalley, no Funchal, mas também a Mrs. Ellen Roughton, com
a escola de Campolide, em Lisboa, a Mr. Archibald Turner, co-fundadordo BNU, com as escolas de Chelas, em Lisboa, a Mrs. Frederica Smith eaos Cassels, no Porto e em Gaia, eaos chamados «brasileiros» de torna-viagem. Este tipo de evangelizaçãovaloriza a pregação da palavra, a componente emotiva e espontânea na vivência da fé individual e em comunidade. A evangelização de Kalley dirige-se às massas que migram do campo para as vilas e para as cidades2.
Tratou-se de proselitismo por aproximação e passa-palavra, através da assistência médica e da pregação evangélica, do culto doméstico, da rede de escolas open-air e dos meetings. Deu origem
à primeira Igreja presbiteriana portuguesa na Madeira em Maio de 1845, mas não houve elites nem sociedades de ideias na sua diáspora. O movimento de Kalley permanece circunscrito. Os madeirenses não são os «pioneiros» da emigração portuguesa na América. Eles precedem os judeus portugueses que durante o século XVII se estabeleceram nas Antilhas e nas colónias britânicas da América do Norte. Mas os Judeus portugueses representavam a elite financeira, com actividades mercantis, enquanto o fenómeno migratório europeu do século XIX é predominantemente agrário e representa o avanço do capitalismo no mundo rural. Outras expressões ambíguas, v. g., «um missionário em construção» (Fernandes, 2004, p. 19), «a síndrome escocesa» (p. 36), «os Evangelhos segundo Kalley» (p. 41) ou «divórcio» (p. 47), para falar do proselitismo e dos neófitos madeirenses. «A irmã inversa do pastor» (p. 61), a clarissa inglesa Mary Jane Wilson, que desenvolve actividade caritativa junto dos camponeses. «América, América» (p. 153), tautologia. «Açúcar, motor da história» (p. 231), entimema, tomado da tese de Marx, o açúcar é aqui entendido como actividade económica e a ideologia subjacente que justifica o trabalho alienado dos escravos, dos imigrantes europeus e asiáticos nas plantações. Cada capítulo começa com uma sinopse histórica e nos seus desenvolvimentos há retornos narrativos. É recorrente o brasileirismo «estadual » no lugar de «estatal» (pp. 144 e 220). A adjectivação é inadequada; os conceitos são imprecisos, v. g., na p. 47, o conceito de eucaristia, que está no lugar da Ceia do Senhor da celebração protestante, é tomado da teologia católica romana. Kalley não tinha uma liturgia definida. As celebrações tomavam a forma de culto doméstico, open-air, meetings. A celebração da «Ceia do Senhor» tinha lugar uma vez por mês, ou em cada trimestre, sem entrar na doutrina da transubstanciação e da consubstanciação, nem na discussão do baptismo, visto tratar-se de sacramentos aceites por Kalley, mas sem carácter sistemático. Fernandes (pp. 174, 178 e 185) refere a «Sabbath School», ou «Trinidad School» e as «Sunday Schools», as escolas dominicais. A verdade é que ao tempo de Kalley, na Madeira (1836-1848), os escoceses observavam o sábado. Esta prática caiu em desuso, mas nos EUA era corrente e a observância dos sábados e dos domingos tem, portanto, significados teológicos diferentes. Passemos a outras situações. Que significa «povo português protestante » (p. 51)? Uma sinédoque que possibilita a hipérbole e a personificação para se referir ao grupo. E a expressão «a América fronteira ao Havai é a Califórnia» (p. 121)? Outra sinédoque por designar um tropos por meio de outro que tem com ele uma relação de necessidade. O texto levanta questões interessantes, giza respostas, mas nem sempre corresponde ao que dele se espera, v. g., fala-se da distribuição das bíblias e opúscu los na Madeira, mas também foram distribuídas em Ponta Delgada e Angra, nos Açores, em Lisboa, no Illinois e no Brasil. A polémica em torno das bíblias opõe a tradução do Pr. João Ferreira de Almeida, segundo o cânone protestante, à tradução do P.e Figueiredo, a partir da Vulgata. A Bíblia era o manual de estudo, mas não se pode dizer «os Evangelhos segundo Kalley» (pp. 41-46) por analogia com O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), de José Saramago. O problema está nas interpretações (exegese, hermenêutica e significados), nos textos (tradições, manuscritos, papiros e códices), nas versões (LXX ou Vulgata), no próprio cânone bíblico: o protestante (66 livros) vs. o católico romano (73 livros). A Bíblia usada por Kalley era a King James Authorized Version, cuja 1.ª ed. é de 1611. Adultos e crianças aprendiam segundo o monitorial system, atribuído ao anglicano Andrew Bell, ou ao quaker Joseph Lancaster, na primeira década do século XIX, bastante divulgado na década de 30 do século XX nas Filipinas e nas Américas pelo missionário norte-americano Charles Laubach: each-one-teach-one. Kalley não é original, mas contribui para a dignificação dos camponeses, assegurando-lhes tanto a medical care como a pastoral care. Outra situação diz respeito aos Lomellino, cuja casa comercial foi estabelecida em 1820 para o negócio de vinhos. José Ferreira Lomellino, proprietário agrícola, cumpriu pena em Luanda, Angola, onde se encontrou com David Livinsgtone em Novembro de 1853, primeiros meses de 1854. Mais tarde, missionários metodistas fundavam a missão do Dondi, no Huambo, em 1914, onde desenvolveram um projecto de formação de quadros nacionalistas angolanos. Fernandes identifica o problema do racismo neste caso deimigração portuguesa, mas presta-se a minudências ao chamar aos descendentes «crioulos», «cabritos» ou «mulatos» e a todos, por analogia com Thomas Keneally, Schindler’s Ark (1981), toma por «os meus exilados da Madeira» (p. 178). Os portugueses eram considerados rash-patash Portugee em Trinidad, Portagee, Porchugeeze e kanakas na Califórnia, niggers pelos Irlandeses católicos romanos do Illinois, nonhaole (não-brancos; brancos eram os anglo-saxões) e bagasse no Havai. A sua assimilação não foi fácil e as estratégias desenvolvidas nem sempre tiveram êxito, v. g., tomar nomes ingleses, procurar casamentos fora do grupo, aderir a outras denominações protestantes ou retomar o catolicismo romano das origens e migrar de novo. O problema do cisma na pradaria
está parcialmente tratado (pp. 186-90). A oposição entre Gonçalves, dos Baptistas, vs. Mattos, dos Presbiterianos, vs. Kalley, é um problema teológico que divide o presbitério dos condados do Illinois em termos da old school e new school. Em questão estavam o pedobaptismo e o matrimónio, os valores morais e a sua conduta numa terra de fronteira concorrida por protestantes de origens britânicas, alemãs e escandinavas. No Illinois, os portugueses, que tinham recebido o baptismo em crianças por aspersão, mantinham os seus costumes, os casamentos dentro do grupo, com muitos filhos. Eles eram pouco inclinados à moral vitoriana e aos estudos e envolviam-se em querelas e disputas judiciais por causa das suas lideranças pastorais e do património das suas igrejas, factos sem precedentes noIllinois. É interessante seguirmos Fernandes (pp. 192-95) na relação que ele estabelece entre Lincoln e os madeirenses, comprovando-se a prática do empréstimo de dinheiro comusura e do envolvimento de João M. Celestino no assassinato de Lincoln, mas sem relação com este grupo de madeirenses.
Há, portanto, momentos de tragédia na história deste grupo e dos seuslíderes, Mattos, Pires, Soares,Baptiste e Silva, das Igrejas fundadasno Illinois e no Havai, a que, Fernandes (pp. 267-268) chama «capelas», outra projecção católica romana, tratando-se de igrejas com referências
presbiterianas. As suas churches acabaramvotadas aos elementos da natureza,v. g., a Trinidad School, em Jacksonville, no Illinois, transformou-se num barracão sem uso específiconos anos 1930, outras deram origem a empreendimentos imobiliários, v. g., a um hotel, nos idos de 1944,
em Honolulu, no Havai, ou ao parking do St. John’s Hospital, em Springfield, no Illinois, em 1966, uma unidade hospitalar católica romana. Tão-pouco faz sentido o lugar-comum quando Fernandes (p. 268) infere que 110 anos de história da Hilo Portuguese Evangelical Church, aliás Central Christian Church, fundada em 1887 no Havai, representam a eternidade, como se os EUA não tivessem história e os europeus desconhecessem que a sua própria história se faz, afinal, na América.

ANTÓNIO DE VASCONCELOS NOGUEIRA


1 Alberto Franco também publicou «A sagados protestantes da Madeira», in Pública, n.º 3675, 9-6-2000, pp. 42-49
2 Por vilas e cidades é, curiosamente, o verso de um antigo hino protestante cuja letra é atribuída ao Pr. Alfredo da Silva (v. Manuel Pedro Cardoso. Por Vilas e Cidades. Notas para a História do Protestantismo em Portugal, Lisboa, Seminário Evangélico de Teologia, 1998, pp. 8-9).


Nota do blogue: Achei por bem incluir esta crítica, que como qualquer crítica é sempre subjectiva, apenas pelas informações que a mesma contém.

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