sexta-feira, abril 17, 2009

«O Bibliófilo José Mindlin» - Bibliomanias

Paixão e perdição

A relação dos homens com os livros, em particular a dos bibliófilos, aqueles que por eles se apaixonam, passa por três estágios. Primeiro, os homens pensam que conseguirão ler um número de livros maior do que de fato é possível. Num segundo estágio, consequência imediata do primeiro, passam a desejar ter em mãos o maior número possível de obras dos autores de quem gostam. Num terceiro momento, já siderados, surgem o interesse pelas primeiras edições, geralmente raras, e a atração pelo livro como objeto de arte. Esta última fase é definida pelo mais célebre bibliófilo brasileiro, o empresário paulista José Mindlin, como perdição. "Quando se chega a esse estágio, aquele que pensava em ser na vida apenas um leitor metódico está irremediavelmente perdido", confessa Mindlin. A patologia – doce patologia – está instalada em definitivo. Essa tese é defendida logo na abertura de Uma vida entre livros – reencontros com o tempo (Edusp-Companhia das Letras, 214 págs. R$ 42), texto confessional e ao mesmo tempo uma espécie discreta de autobiografia intelectual, em que o bibliófilo conta a história de sua paixão pela literatura.
Uma vida entre livros é uma obra desavergonhadamente derramada, sincera, até um pouco exagerada às vezes, como se passa quando se confessa uma paixão. Nele, Mindlin deixa de lado a vida mais crua do mundo empresarial e se dedica a entregar aos leitores, sem nenhuma pose de literato, pequenos tesouros íntimos. José Mindlin é, pode-se afirmar, o grande amante dos livros no Brasil. Sua biblioteca particular em São Paulo, ele mesmo estima, tem hoje 30 mil volumes, dos quais dez mil são raros e dois mil, raríssimos. Mindlin começou a comprar livros aos 13 anos. Nessa idade, ele já tinha lido obras como a História das Religiões, de Salomon Reinach, e as Letras e narrativas, de Alexandre Herculano. Desde 1927, lá se vão 70 anos, o empresário tem o hábito de frequentar sebos. Uma única regra o guiou na construção de sua esplêndida coleção, o prazer da leitura. "O que não gosto, e raramente acontece, é de ler por obrigação", diz. Mesmo diante daqueles títulos raros que sempre desejou e nunca conseguiu comprar, é o prazer, e não a cobiça, que o move. Ainda há muitos desejos insatisfeitos. Um deles é adquirir a primeira edição de Cultura e opulência do Brasil, de Antonil, publicada em 1711. Chegou a tê-la um dia nas mãos, mas não conseguiu comprá-la.
O empresário ensina que a mais importante qualidade de um bibliófilo não é a fortuna, ou a erudição, mas a paciência. Ele relata, para os que duvidarem, a difícil história que viveu com a primeira edição de O Guarany, de José de Alencar, de 1857. O livro – que é hoje um dos tesouros de sua biblioteca – foi oferecido a amigos do empresário, nos anos 60, por um grego, que pedia por ele algo como US$ 1.000. Para desespero de Mindlin, que só veio a saber da oferta depois, nenhum dos amigos se interessou. Dez anos depois, a primeira edição da obra apareceu no catálogo de um leilão de raridades na Inglaterra. Ele fez a encomenda a um livreiro londrino, que acabou deixando o livro escapar porque o achou caro demais. Em 1977, Mindlin foi a um leilão de livros raros em Paris e lá soube que O Guarany estava disponível. Na viagem de volta, já com seu tesouro no colo, pelo qual pagou muito mais do que o preço original, Mindlin pegou no sono. Ao desembarcar, não se deu conta de que deixara o livro caído no tapete do avião. A Air France o achou, três dias depois, em Buenos Aires. Foi preciso esperar mais alguns dias até o volume chegar, são e salvo, a seu destino definitivo.
No final Mindlin ainda elenca seus autores preferidos, entre eles Balzac, Tolstói, Cervantes, Sterne e Virginia Woolf. A experiência o leva a dar bons conselhos. Em matéria de livros, garante, cada um deve ser capaz de fazer suas próprias escolhas. O leitor deve se permitir passar de Machado a Astérix ou de Shakespeare a Agatha Chirstie. O importante é o prazer da leitura. Tanto que resume seus sentimentos com uma frase: "Num mundo em que o livro deixasse de existir, eu não gostaria de viver."
"Paixão e perdição" - Texto de José Castello, para ISTO É, 12/11/97
O guardião de relíquias
José Mindlin, o maior bibliófilo do país, expõe ao público sua coleção de gravurasMichelangelo, além de genial, era um ingrato - ao menos com o papa Júlio II, o mecenas responsável pela encomenda dos afrescos que adornam o teto da Capela Sistina. No século 16, houve entre seus contemporâneos quem reconhecesse o semblante do papa entre as infelizes criaturas que expiavam culpas no Juízo Final, na mesma Sistina. Antes e depois disso, muitos mecenas fizeram por merecer melhor recompensa. É o caso, para ficar num exemplo próximo a nós, do ex-empresário José Mindlin, promotor de mais de duas dezenas de manifestações culturais, principalmente livros, e amigo de gente graúda no meio artístico. Foram tantas as gravuras e matrizes com que artistas agradecidos lhe presentearam que, com muitas outras adquiridas por ele ao longo de 84 anos de vida, deu para montar a exposição Os Colecionadores - 1998, com cerca de 750 peças de 67 autores diferentes. E ainda sobrou quase outro tanto.Entre modesto e franco, Mindlin avisa que o acervo não chega a ser propriamente uma coleção, embora inclua trabalhos dos principais nomes do país no gênero: Lasar Segall, Oswaldo Goeldi, Lívio Abramo, Fayga Ostrower e Maria Bonomi, entre outros. Não chega, porém, a formar um "todo coerente", como diz Mindlin, ao contrário de seu outro tesouro - a biblioteca. Aos livros, o ex-dono da Metal Leve e o maior bibliófilo do país destina duas alas de sua casa, em São Paulo, além de dois imóveis vizinhos inteiros. Suas estantes acomodam cerca de 26 mil títulos, dos quais 10 mil em edições raras, datadas desde o século 15.Ausente da mostra Os Colecionadores estará, por ser estranha ao tema e ao mundo da gravura, a obra talvez mais reveladora da personalidade de Mindlin. Permanecerá em lugar nobre de uma estante na sala principal da biblioteca, guardada por anjos e santos barrocos que espreitam das paredes, ao lado de telas de Tarsila, Segall e de uma madonna peruana. De encadernação austera, ela leva na lombada o nome de Guita Kauffmann, não por acaso o nome de solteira da senhora Mindlin. Ao toque adestrado do marido, uma parte do que seria a capa desliza e deixa à mostra um engenhoso mecanismo, concebido por ele, dotado de pés basculantes e travas. Em instantes transforma-se em um descanso para pés. Foi um presente, nos anos 30, do então estudante da Faculdade de Direito do Largo São Francisco à colega, namorada e futura esposa, queixosa de sua baixa estatura, que a deixava com os pés no ar quando se sentava à carteira.O episódio antecipava alguns dos atributos que esse filho de imigrantes russos iria lapidar no futuro, como criatividade, espírito empreendedor, determinação e arrojo, além da obsessão por livros. Da impetuosidade, Guita tivera prova ao pisar pela primeira vez na faculdade, como caloura. Tão logo chegou, os veteranos passaram a assediá-la na tentativa de conquistar sua adesão para um dos partidos políticos da época. Testemunha da cena, Mindlin tomou a frente e lançou seu mel, dizendo-se o melhor partido que a jovem poderia encontrar. A liga combinou. Desde então, ela tem sido sua parceira incondicional, até na paixão pelos livros - a ponto de tornar-se a encadernadora oficial da casa - e pela arte. Com freqüência, foi graças a seu incentivo que ele resolveu desembolsar pequenas fortunas para ter alguma relíquia impressa na estante.Formar uma biblioteca como a de Mindlin é obra de uma vida inteira e resultado de muito conhecimento, paciência e esforço, sem falar em dinheiro. A pedra fundamental dessa Alexandria dos trópicos foi lançada quando ele tinha 13 anos e comprou o Discurso sobre a História Universal, de Jacques Bossuet, em edição portuguesa do século 18. Mas foi só no ano seguinte que a comichão de colecionador se apossou dele, despertada pela História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador, presenteada por uma tia. Sobre ela, edificou-se a maior brasiliana conhecida - mais completa até que a da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, atesta Pedro Correa do Lago, um dos principais livreiros do país.O conjunto inclui desde manuscritos dos Sermões do Padre Vieira a edições originais de relatos das primeiras viagens de cunho científico pelo Brasil, como a de Hans Staden; das cartas de dom Manuel ao papa aos originais revistos de Grande Sertão: Veredas e Sagarana, de Guimarães Rosa, e de dezenas de grandes obras da literatura brasileira. Mais prático do que relacionar uma a uma, dizer que faltam apenas duas obras importantes na brasiliana dá a medida de sua abrangência: História da Província de Santa Cruz, de Pero de Magalhães, e Cultura e Opulência do Brasil, de Antonil. Esta, em edição de 1711, de uma família francesa radicada no Rio de Janeiro e disposta a vendê-la, chegou a ser manuseada por Mindlin. Mas, por influência de um antiquário que intermediava o negócio, foi parar em outras mãos. Seus antigos donos teriam recebido US$ 3 mil pelo livro. Mindlin afirma que teria pagado dez vezes mais.Em todo caso, ele não perde o sono pelas lacunas. Mas também não espera que uma raridade lhe caia no colo. No ano passado, informado de um colecionador uruguaio interessado em vender um lote enorme de documentos originais sobre a Província Cisplatina, foi até Montevidéu e voltou de lá carregando 96 quilos de papéis sobre o Brasil. Teve de emprestar duas malas de nosso corpo diplomático - as duas que levara de casa se mostraram insuficientes. A documentação só agora terminou de ser tombada por uma professora, Cristina Antunes, braço direito de Mindlin há dez anos.Viajante contumaz, ele organiza seus périplos segundo as conveniências da biblioteca. Em 1973, por exemplo, convidado a participar das comemorações do 25o aniversário da criação de Israel, ele introduziu no roteiro uma escala na Suíça ao descobrir a existência de um manuscrito jesuíta sobre a Bahia do século 17. Ao desembarcar com ele na bagagem em Israel, despertou a atenção de uma agente alfandegária. Intrigada, quis saber do visitante o conteúdo dos papéis e, após ouvir uma explicação minuciosa, não resistiu à tentação de perguntar: "O senhor sempre faz essas anotações quando viaja?"Foi a primeira e última vez que Mindlin, um judeu, esteve em Israel. Não que ele seja anti-sionista. Pelo contrário, acha importantíssima a acolhida dada por Israel aos judeus perseguidos em outras partes do mundo. Mas também não concorda com a tese de subordinar a Israel aqueles que escolheram viver fora de lá. Além do que é um agnóstico assumido e rejeita os dogmas religiosos do judaísmo, embora se sinta ligado ao povo hebraico por laços culturais. Por isso, é visto com reservas pela ala mais ortodoxa da comunidade judaica no Brasil.A biografia de Mindlin indica que ele não tem medo de cara feia. Aos 84 anos, também se dá ao direito de dizer o que pensa sem se preocupar com melindres, embora com delicadeza. Dias atrás, por exemplo, recebeu em sua casa a visita de uma jovem editora. Logo na chegada, ela lhe entregou o exemplar número 1 do primeiro livro que publicava. Mindlin, que não a conhecia, leu a dedicatória e pediu licença para observar: não fica bem colocar o carimbo "Cortesia do editor" em livro oferecido, uma regra no Brasil. A jovem, parece, aprendeu a lição.Títulos recentes, com cheiro de best-seller, têm escassa chance de inclusão no rol de 80 a 100 livros que, em média, Mindlin lê por ano, incluindo-se as releituras. Só o colossal Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, por exemplo, ele devorou cinco vezes, em edição original. Os clássicos, diga-se, formam outro sólido pilar de sua biblioteca, forrada com Petrarcas, Camões, Joyces etc. Natural, portanto, que não passe um só dia, quase, sem que um pesquisador, jornalista ou editor percorra aquelas estantes em busca de material para trabalhos pessoais. Mindlin fica feliz. Como costuma dizer, ele é apenas o guardião do tesouro, e não o seu dono.
"O guardião de relíquias" - Texto de Nelson Letaif, para ÉPOCA ONLINE


José Mindlin: O guardião dos livros

Uma loucura mansa. É assim que o bibliófilo José Mindlin define sua paixão pelos livros. Por amor a eles, é capaz de passar 20 anos atrás de um exemplar raro, como aconteceu com a primeira edição de O Guarany, de José de Alencar. A obsessão começou quando era menino e hoje, aos 85 anos, está expressa numa imensa biblioteca particular de mais de 30 mil volumes que não pára de crescer. Tanto que o prédio construído especialmente para ela já não basta. Mindlin aluga dois imóveis perto de sua casa para abrigar os livros excedentes. Um terço dessa coleção gigantesca é formada por obras raras, garimpadas em livreiros e sebos do mundo inteiro, muitas vezes às custas de estratégias mirabolantes para consegui-los. Há desde a primeira edição de Os Lusíadas, de Luís de Camões, a manuscritos como o Livro das Horas, um pergaminho de 1480. E também originais de livros como Olhai os Lírios do Campo, de Érico Veríssimo, com correções à mão do autor. Tal é a amplitude da biblioteca de Mindlin, que o Museu Lasar Segall, em São Paulo, vai inaugurar no próximo dia 3 de outubro uma exposição dos 110 exemplares mais representativos da coleção.
José Mindlin nunca se considerou proprietário dos livros que tem. Para ele, uma biblioteca é sinônimo de preservação de cultura, que não tem dono. Aliás, o bibliófilo acaba de assinar um acordo com a Universidade de São Paulo, doando a parte mais extensa de seu acervo, batizada por ele de "Brasiliana", que reúne apenas livros sobre o Brasil. O contrato prevê a construção de uma biblioteca de 10 mil metros quadrados para abrigar o tesouro em pleno campus. Assim, estudantes e pesquisadores terão acesso a preciosidades como a História Geral do Brazil, de Varnhagen, publicada em 1876, ou as Viagens de Hans Staden, de 1557. Mesmo diante de tal gesto, Mindlin faz questão de salientar que a biblioteca nunca pertenceu só a ele, mas também a Guita, sua mulher, que é restauradora de livros.
Apesar dos anos de garimpagem, Mindlin não se define como um colecionador, mas, antes de tudo, um leitor inveterado. "Estou sempre com um livro na mão", conta. "Sou um leitor que passou a bibliófilo." A leitura foi a origem de sua vasta coleção, com os livros sendo adquiridos um a um. Mas como Mindlin interessa-se pelos mais variados assuntos — ficção, poesia, teatro, biografia, ensaio, relato de viagem, para ficar em alguns —, a biblioteca cresceu "indisciplinadamente", como ele gosta de frisar. A busca de obras raras surgiu tempos depois.
A passagem de leitor para bibliófilo se deu quase imperceptivelmente, mas logo se transformou num caminho sem volta. Ele explica que o ponto inicial desse processo pode ser um escritor de quem se gosta: "O desejo de ter todos os livros deste autor já é o começo de uma coleção", argumenta. "Aos poucos, vai surgindo o interesse pelas primeiras edições, as encadernações, as tipologias, ou seja, a atração do livro como objeto. Chega-se então à busca de raridades. Nesse ponto, o leitor já está irremediavel mente perdido. Foi o que aconteceu comigo. Dei-me conta de que era uma doença incurável, mas, ao contrário das outras, só me fazia bem. Por isso, nunca me preocupei."
Achados e perdidosO primeiro livro raro adquirido por Mindlin foi Discurso sobre a História Universal, de Bossuet, de 1740, quando ele era ainda um garoto de 13 anos. A experiência de bibliófilo, entretanto, acabou mostrando que não bastava um livro ser antigo para ser raro. Outros fatores contam também, como o conteúdo da obra, o valor histórico, a tradução, as ilustrações e até curiosidades como dedicatórias e erros tipográficos (...). "Há livros modernos mais difíceis de encontrar do que muitas obras de séculos atrás", garante Mindlin. Mas encontrar um exemplar raro, depois de anos de busca incessante, é a maior glória de um bibliófilo, que precisa lançar mão de alguns subterfúgios para ser bem-sucedido. Uma regra básica é nunca demonstrar emoção diante do livreiro. Isso pode fazer com que o preço de um exemplar chegue às alturas. Outra estratégia é sempre pechinchar. Se bem que, em alguns casos, "a gente vende um imóvel e compra o livro", prega Mindlin. "Dinheiro a gente recupera, mas um livro raro, não."
Há muitas dessas histórias por trás das estantes da vasta biblioteca. Entre as mais curiosas está a aquisição da primeira edição de O Guarany, de José de Alencar, publicada em 1857, pela qual o bibliófilo esperou 17 anos. A primeira notícia que teve sobre a obra foi na década de 60, quando um grego, no Rio de Janeiro, chegou a oferecê-la por mil dólares. Mindlin soube disso tarde demais. O grego já havia desaparecido. Persistente, passou dez anos atrás do exemplar, até que ele reapareceu num leilão na Inglaterra. Mindlin, imediatamente, encarregou um livreiro amigo de arrematá-lo. De novo, a sorte não ajudou. Quando o livro alcançou 60 libras, o amigo resolveu desistir, pensando que Mindlin achasse o preço excessivo. Só em 1977, o bibliófilo conseguiu realizar o seu sonho, adquirindo O Guarany em Paris, num leilão de livros raros sobre o Brasil. Para isso, teve que travar um verdadeiro embate com o grego, que, então, já pedia pelo livro muito mais do que havia oferecido no Rio. Mas a proeza não termina aqui. Na volta para o Brasil, Mindlin veio com a raridade no colo e acabou perdendo-a no avião. Só três dias depois o livro reapareceu. Tinha ido parar em Buenos Aires.
Apesar das muitas façanhas com final feliz, Mindlin guarda algumas frustrações. A maior delas foi não ter comprado a primeira edição de Cultura e Opulência do Brasil, de Antonil, publicada em 1711, embora a oportunidade tenha aparecido uma vez. Até hoje ele se arrepende disso, pois nunca mais teve outra chance. "Há momentos que não se pode hesitar", explica. "É melhor arrepender-se de ter comprado, do que ter deixado de comprar." Outro velho sonho é possuir um livro de Marcel Proust autografado ou com anotações do próprio escritor. "Mas uma raridade dessas atinge preços tão elevados que não tem cabimento pagar", pondera. "A gente não pode ser escravo do livro a ponto de fazer grandes loucuras." Depois de uma pequena pausa, Mindlin completa: "Pequenas loucuras, sim".
"José Mindlin: O guardião dos livros" - Texto de Cláudio Fragata Lopes, in Galileu/Globo
Caso de amor com os livros: José Mindlin

Quando, aos 13 anos, o empresário José Mindlin começou a comprar livros em sebos de São Paulo, ele não imaginava o resultado da investida. Setenta e cinco anos depois, Mindlin é considerado o maior bibliófilo brasileiro, reunindo uma coleção com cerca de 29 mil títulos, algo próximo a 45 mil volumes, muitos deles verdadeiras raridades. "A leitura é que conduziu à formação da biblioteca", conta. "Para mim, é uma compulsão patológica tanto a aquisição quanto a leitura", afirma ele, que esteve na Capital na semana passada participando de uma palestra promovida em conjunto pelo curso de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) e pelo Escritório do Livro.
Filho de pais russos, imigrados para o Brasil no começo do século passado, advogado, fundador da Metal Leve (fabricante de autopeças), repórter de "O Estado de S. Paulo" e ex-secretário de Cultura do governo Paulo Egydio Martins, Mindlin define as etapas do processo em que se estabelece a compulsão patológica, o "verdadeiro vício", pelos livros. "Primeiro se começa com as edições comuns. Depois vem o interesse pelo livro bonito, com ilustrações e bem diagramados. A próxima é a busca das primeiras edições de um determinado título. Passa-se, então, a procurar exemplares autografados. A última etapa é a consciência da raridade. E aí você está definitivamente perdido", afirma ele, com um bom humor que é uma das suas características.Até o ano passado, ele lia de seis a oito livros por mês. Agora, com problemas de visão, precisa recorrer a uma lupa, dificuldade que reduz um pouco este volume. Mesmo assim, mantém uma pilha deles na cabeceira e um sempre próximo à mão, que lhe permite ler "em uma soma de pequenos períodos". "Minha preferência é por ficcão e crítica literária. Atualmente estou lendo "A Mãe de sua Mãe e suas Filhas" (Editora Globo), de Maria José Silveira", conta. A escolha dos títulos que vão compor a biblioteca é totalmente intuitiva. "Quando eu vejo um livro que me atrai, mesmo sem ter nenhuma referência, eu compro e normalmente não me arrependo." Antes, somente eram adquiridos aqueles que interessavam pessoalmente a Mindlin, sua mulher ou filhos. Agora que a coleção virou referência, outra parte foi agregada, com história natural e geografia, entre outros.Consciente de que o acervo literário formado ao longo das quase oito décadas não poderá ser refeito caso se disperse, Mindlin já traçou planos para a biblioteca. A idéia é montar uma fundação de direito privado, fazendo a doação da parte brasileira - cerca da metade dos títulos. "A instalação será num prédio da Universidade de São Paulo (USP), mas com o gerenciamento pela fundação num período de 99 anos", detalha. Como há muitos livros raros, o acesso será restrito a pesquisadores.O intelectual admite que manter uma biblioteca em casa é algo que dá prazer, mas argumenta que "ter o livro não deveria ser a condição para se ler". Para ele, é obrigação do governo — com a colaboração dos empresários — a formação de bibliotecas, principalmente em escolas públicas de ensino fundamental e médio. Com isso, estaria-se estimulando o hábito principalmente entre as crianças. "O interesse cada vez maior pela leitura também formará um grupo maior de patrocinadores. Quem gosta de ler tem o prazer de que isso seja transmitido", ensina ele, que é considerado um dos mais importantes mecenas brasileiro do livro. "Eu tenho procurado sempre inocular o vírus da leitura e do gosto pelos livros para um maior número de pessoas."Esse incentivo é papel de todos, já que a sociedade é um conjunto e não compartimentos estanques, afirma Mindlin. Neste esforço, a escola representa um dos fatores mais importantes, "mas tem que começar pelos professores. Eles têm que ler e gostar para poder transmitir com eficiência. Se não têm amor, dificilmente irão transmitir isto", argumenta. E a leitura deve ser vista como fonte de prazer e não como um compromisso curricular. "Ninguém gosta de fazer as coisas por obrigação. O que a criança lê é mais ou menos irrelevante. Adquirindo um hábito, a medida em que cresce, ela desenvolverá o discernimento sobre a qualidade."A respeito da qualidade da literatura brasileira, ele diz que há bons autores e outros nem tanto. Mesmo sem citar nomes, faz referência indireta a Paulo Coelho, recém-empossado na Academia Brasileira de Letras (ABL): "Há um escritor que está para a literatura assim como o bispo Edir Macedo está para a religião", provoca. "Aquilo não é literatura, mas não podemos generalizar, temos bons autores e há edições populares bem acessíveis, com bons textos", afirma. "Caso de amor com os livros: José Mindlin" - Texto de Carla Pessotto


Entrevista de Mindlin a Suza Machado (Extracto)
[Jornal "A Tarde" de 12/02/2005]

Suza Machado - O bibliófilo José Mindlin e sua atuação como editor são temas de duas publicações recentes - o livro/DVD José Mindlin, Editor e Memórias Esparsas de uma Biblioteca. Já sua biblioteca é tema do livro de Cristina Antunes, Memórias de uma Guardadora de Livros. O que significa para o Sr. estas iniciativas?
José Mindlin - Os livros de autoria de Cristina Antunes e o meu, editados como "Memórias", podem mostrar como a formação de uma biblioteca não é um bicho de sete cabeças. Foram escritos com prazer. Quanto ao livro José Mindlin, Editor foi uma gentileza da Edusp quando completei os primeiros 90 anos. Seria hipocrisia dizer que não me deram um prazer especial. Meu trabalho como editor veio do desejo de tornar conhecidas às gerações atuais obras importantes, especialmente do Modernismo brasileiro que, por não serem tomadas a sério na época de sua publicação, não se conservaram, tornando-se grandes raridades. José Mindlin, Editor foi uma homenagem elogiosa, e uma fraqueza de todos nós mortais é ficarmos contentes com o reconhecimento de nosso trabalho e com elogios à nossa capacidade de realização. Percorrendo as páginas desse livro, me dei conta de que eu mesmo não me lembrava de ter proporcionado a publicação de tantas obras. Espero, aliás, continuar essa atividade de editor bissexto ou meio clandestino.
Suza Machado - O que destaca nessas publicações? Que outras histórias o bibliófilo José Mindlin ainda não contou?
José Mindlin - O que procurei destacar foi a importância fundamental da leitura durante a vida. Em paralelo, procurei dar idéia do prazer que a formação de uma biblioteca proporciona e os requisitos para conseguir isto: conhecimento, perseverança, olhos abertos para as oportunidades que se apresentam e... ter o destino a seu lado, pois o acaso é um dos principais fatores do sucesso da garimpagem. As histórias de garimpagem são inúmeras e assim mesmo já contei um bom número delas. Isto não quer dizer que não possa um dia publicar mais um livro com outras peripécias (...)
Suza Machado - A transferência de grande parte de sua biblioteca para um espaço público é um gesto de generosidade e uma grande contribuição para a cultura brasileira. De que forma a iniciativa privada pode também contribuir para melhorar o acesso ao livro e incentivar a leitura?José Mindlin - Nossa biblioteca foi formada sem o fetiche de propriedade, e sim como forma de facilitar a leitores e pesquisadores o conhecimento, além de assegurar a conservação do que já se publicou. Conseguimos formar um conjunto de obras relacionadas com estudos brasileiros, que seria uma pena que se dispersasse. Daí a idéia de destinar este conjunto a uma universidade que representasse uma segurança de perenidade. A gente passa e os livros ficam. O que vamos fazer é algo que poderia ser feito por muitos outros proprietários de bibliotecas (...)
Suza Machado - Sua biblioteca tem um acervo destacado sobre o Brasil. Que livros indicaria como indispensáveis para alguém que quisesse ter um acervo mínimo sobre o tema e por que estas indicações?
José Mindlin - Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, História do Brasil, de Bóris Fausto, Capítulos de história colonial, de Capistrano de Abreu, Evolução política do Brasil, de Caio Prado Júnior, e outras obras desses autores. Indico esses livros porque são estudos de grandes especialistas, que introduziram uma visão nova na História brasileira, muito mais interpretativa do que factual. Afinal a História não é feita apenas de fatos, nomes e datas. É evidente, no entanto, que muitas outras obras seriam necessárias, como por exemplo as de viajantes, que descrevem o País e a evolução dos costumes. A Coleção Brasiliana, da Companhia Editora Nacional, ou a Coleção de Documentos Brasileiros, da Editora José Olympio, por si sós constituiriam uma biblioteca bastante boa. Esta poderia ser iniciada com os autores que indiquei e ir sendo formada gradualmente e através de um programa de leitura.


José Mindlin: Uma vida entre pistões e livros (Extracto)

(...) Como um bom romance, a vida de José Ephim Mindlin esconde uma surpresa em cada página. "Virei empresário por acaso", disse a ISTOÉ. Antes, aos 15 anos (nasceu a 8 de setembro de 1914, na capital paulista), foi contratado como repórter de O Estado de S.Paulo e participou da Revolução de 1930. Como era um dos poucos no jornal que falavam inglês, o dono de O Estado, Júlio de Mesquita Filho, o encarregava de passar informações por telefone aos revolucionários no Rio de Janeiro, driblando os censores monoglotas.
O jornalismo perdeu o talento de Mindlin quando ele entrou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em 1932. Enquanto os professores liam monótonas preleções, o jovem estudante sentava-se ao fundo da classe para devorar a obra do francês Montaigne - o amor pela leitura começou aos 13 anos, ao entrar num sebo pela primeira vez. Nos primeiros dias de aula do quinto ano de curso, cruzou nos corredores com uma caloura que vinha sendo assediada pelos veteranos para entrar nos partidos políticos da época. Ele tomou coragem: "Olha, tudo isso é uma bobagem, porque o melhor partido sou eu!" O casamento com dona Guita aconteceu poucos meses depois e completará 61 anos em dezembro (têm quatro filhos e 11 netos).
Formado, ele atuou 15 anos como advogado. Durante o Estado Novo, defendeu imigrantes europeus que tentavam ingressar no Brasil, fugindo da Segunda Guerra, mas tinham sua entrada negada pelo governo. Em 1950, alguns clientes o procuraram para redigir um contrato de sociedade com uma fabricante alemã de pistões - em tempo: são peças cilíndricas que "sugam" o combustível permitindo o funcionamento do motor. Como os clientes desistiram do negócio, Mindlin não perdeu a oportunidade e assumiu o compromisso. Juntou-se a outros quatro empreendedores e fundou a Metal Leve - nome escolhido em homenagem ao alumínio, matéria-prima do produto.
Começou com 50 funcionários. Não demorou até que Juscelino Kubitschek chegasse à Presidência e, na esteira do desenvolvimento da indústria automobilística, a Metal Leve se tornasse uma potência no setor de autopeças. A sólida estrutura financeira, cujo segredo era evitar endividamentos, permitiu a abertura de filiais no Exterior. Presidindo a empresa, Mindlin chegou a empregar seis mil pessoas. "Posso dizer, sem pretensão e água- benta, que ajudamos a desenvolver o País. E sem tirar um tostão dos cofres públicos." A prosperidade durou até o início do Plano Real, na década de 90, quando o câmbio sobrevalorizado reduziu bruscamente as exportações e abriu o mercado brasileiro para as autopeças importadas. Após três anos amargando prejuízo, Mindlin vendeu suas ações em 1996. "Do ponto de vista emocional, foi muito difícil. Mas, racionalmente, deveria ter vendido antes."
Sempre com um livro debaixo do braço, agradece a Deus - embora seja agnóstico - ao ficar preso em congestionamento no trânsito, para poder devorar bons romances. Acredita ter lido, em cálculo otimista, oito mil volumes. "Gostaria de viver 300 anos, o que me permitiria ler de 25 a 30 mil livros." No fundo, Mindlin sabe que não é qualquer um que chega aos 85 anos com tanta disposição. Todo dia caminha quatro quilômetros no quintal da casa onde mora no Brooklin, na zona sul de São Paulo. Dá 40 voltas no pátio de 100 metros. E se dá ao luxo de não evitar suas guloseimas preferidas: chocolate, marzipã e bala de ovo. "Não tenho nenhuma pressa em me separar da biblioteca", brinca. Em caso de surpresa, no entanto, já adiantou aos filhos que gostaria de descansar em paz num túmulo que tivesse o seguinte epitáfio: "José Mindlin - Fabricou pistões a maior parte da vida sem saber o que eram." [in ISTO É]

Entrevista de Mindlin ao Jornal do BAN (Extracto)

Band - Em seu livro o sr. cita Thomas Mann dizendo que deveria ser proibida a leitura de bons livros, porque existem os ótimos. Então eu queria que o sr. desse uma dica para os estudantes sobre como eles podem discernir esses ótimos livros, sem ficar restrito aos clássicos?
José Mindlin - Bem, no próprio livro eu digo que essa idéia é inaplicável porque não existe um critério rigoroso para determinar quais são os livros excelentes, quais são os bons, quais são os regulares. Eu comecei a ler bastante cedo e a vida inteira continuei lendo. Acho que a leitura é uma das melhores coisas que a gente tem na vida, mas tem de ser num campo de liberdade intelectual – cada um resolve o que acha melhor. O importante é adquirir o hábito da leitura, não importa com quais livros, porque, depois de o hábito estar enraizado, vem a seletividade por si mesma. E cada um vai escolher se gosta de clássicos, de romances policiais – depende da vontade de cada um. Não se pode dizer “Você tem de ler determinados livros”. O máximo que se pode dizer é: “Eu achei esse livro muito bom e acho que você teria prazer em lê-lo” ou então “Eu li esse livro e achei que a leitura é uma perda de tempo, mas não é pecado gostar”. Não pode haver um preconceito de ler só um determinado tipo de livro. Para dar um exemplo extremo, uma pessoa pode gostar de ler Os Sermões do Padre Vieira e de repente interromper essa leitura para pegar um livro da Agatha Christie. Não vejo nada de mau nisso. O importante é adquirir o hábito da leitura e ir apurando por si mesmo a escolha do que ler (...)
Band - Quando começou seu interesse pela leitura? E por exemplares raros?
José Mindlin - O Brasil era muito diferente na minha infância, não tinha tantas opções. Eu tive a chance de estudar francês, que ficou sendo minha segunda língua. Primeiro, claro, a literatura infantil. Eu era leitor do Tico-tico, que formou diversas gerações. Havia os livros da Condessa de Ségur. Quando Monteiro Lobato surgiu, eu já era mais crescido. Então eu comecei a freqüentar sebos, o que também é um hábito muito salutar, porque nos põe em contato com coisas de outras épocas. E já aos 13 anos meu interesse por edições antigas começou, quando vi uma edição francesa impressa em Coimbra em 1740, se não me engano, e fiquei fascinado. Mais tarde aprendi que a idade do livro tem um significado muito relativo. Há muito livro antigo que não vale nada, e muito livro moderno que é excelente. Aos 15 anos lembro que comprei um livro de poesias do Machado de Assis, com dedicatória autógrafa dele. Essas coisas são apaixonantes e vão criando o requinte da bibliofilia. Aprendi o valor das primeiras edições, mas aprendi também que em alguns casos a primeira edição pode não ser a mais importante, como em O Guarani, de José de Alencar. E o gosto vai assim se tornando uma compulsão. Eu brinco dizendo que no meu amor aos livros há um conteúdo patológico, mas é uma patologia que faz sentir bem. E tem outra particularidade importante: é incurável. Eu procuro, nos muitos contatos que tenho com a mocidade, inocular o vírus do amor aos livros, porque uma vez inoculado está resolvido – a pessoa não se livra mais. (...)
In: bibliomanias.no.sapo.pt/Mindlin.htm
Nota do Blogue: Uma compilação de várias entrevistas com José Mindlin.

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