ou as idílicas recordações de Frances Dabney
Nascida no Faial no ano de 1856, Frances Susan Dabney pertenceu à quarta geração dos Dabney – família norte-americana que viveu praticamente durante todo o século XIX nesta ilha. Por via da acção desta família, a Horta haveria de se tornar a primeira localidade da Europa a possuir uma representação consular norte-americana logo após a Independência dos Estados Unidos.
Recorde-se que, a par do trabalho diplomático, os Dabney desenvolveram papel de relevo em vários negócios, nomeadamente: o abastecimento de baleeiras norte-americanas; a exportação de laranja, de vinho e aguardente do Pico e de óleo de baleia; a caça à baleia; a pesca; a venda local de bens importados da América e de materiais de construção; o fornecimento de carvão aos vapores; a manutenção e reparação de navios; a indústria de moagem, entre outros.
Imbuída de um espírito filantrópico, a família Dabney tomou, na ilha do Faial, iniciativas pioneiras no âmbito da benemerência e de projectos inovadores a nível da agricultura e da indústria, da fotografia, das artes, das ciências e da educação, fontes de prestígio social que perdura até aos dias de hoje.
Foi neste contexto que Frances Dabney viveu e cresceu. Neta de Thomas Hickling, vice-cônsul dos Estados Unidos da América na ilha de S. Miguel, e filha de Sarah Hickling Webster (1821-1909) e de John Pomeroy Dabney (1821-1874), Francie (como era carinhosamente chamada por Roxana Lewis Dabney, sua tia que compilou os Anais da Família Dabney) manteve-se na cidade da Horta até 1874, altura em que completou 18 anos de idade. Com a morte do pai, ocorrida num acidente a bordo de um navio em viagem de regresso a Boston, mudou-se para aquela cidade com a mãe e duas das suas irmãs: Sarah e Ellen. Segundo Francis Rogers, em Atlantic Islanders, as três irmãs mantiveram-se solteiras e viveram juntas os últimos anos das suas vidas em Boston.
Vocacionada para a poesia, Frances deu à estampa, em 1903, o livro Saudades, escrito na língua inglesa e em edição familiar e privada de 100 exemplares.
Um exemplar deste livro chegou às mãos de Arthur Prescott Lothrop, que o mostrou ao seu colega José Francisco Costa, que por sua vez o deu a conhecer a um outro colega, Rylan Brenner, director do BCC´s Theatre Arts Program e que o viria a adaptar para teatro, tendo, em Setembro de 2002, levado a cabo um trabalho cénico com o título de Saudades: Dream of a Homeland.
José Francisco Costa tomou-lhe o gosto e traduziu – e bem – o referido livro para português. Conjugaram-se vontades e esforços e, passados que são 103 anos, Saudades é agora dado à estampa, em cuidada edição bilingue.
Chamaria a atenção do leitor para as ilustrações do livro, da autoria de Samuel Longfellow (1819-1892), aqui reproduzidas pela primeira vez. Segundo Sally Sapienza, estamos provavelmente perante alguns dos primeiros desenhos feitos por visitantes americanos às ilhas açorianas. E, a propósito, recorde-se que Samuel Longfellow era irmão de Henry Wadsworth Longfellow, eminente poeta americano do século XIX, tendo sido professor particular dos filhos de Charles Dabney, na Horta, durante os anos de 1843 e 1844 (um desses filhos era John Dabney, pai de Frances).
Constituído por 18 narrativas, Saudades é um livro de breves memórias e fugazes vibrações. São fragmentos de vida vivida e sonhada, de afectos, sentimentos e emoções. Frances lança olhares nostálgicos e retroactivos sobre um tempo vivido no microcosmo da ilha do Faial, revisitando lugares, pessoas e acontecimentos, associando a infância insular ao mito do Éden, isto é, a infância enquanto paraíso irremediavelmente perdido. Numa escrita da intimidade, tricotada pelas marcas de uma inocência assumida, a narradora fala-nos da alegria de sensações que ficaram enraizados na sua memória. Exprime-se através de uma prosa poética eivada de idealismo, tranquilidade e harmonia, e fala das pessoas com profundo amor e das paisagens com enorme fascínio.
Este livro é precisamente uma declaração de amor às ilhas do Faial e do Pico, sobre as quais a autora nos dá visões esplendorosas e impressionistas, carregando nas cores do idílico e do pitoresco, mas escrevendo sempre com apurado sentido estético e sensibilidade artística.
De resto Saudades reflecte aquilo que a família Dabney desenvolveu ao longo da sua estada no Faial: uma profunda relação de conhecimento, de amizade e de culto da paisagem e, sobretudo, do povo rural do Faial e do Pico. Este conhecimento directo e esta relação de empatia estão aqui bem patentes, sobretudo no que se refere à fruição paisagística daquelas ilhas (com especial relevo para a imponência da montanha do Pico) e à observação das cenas da vida quotidiana, do tipo etnológico, num registo muito interessante que marca as diferenças culturais dos açorianos: os artefactos e o vestuário dos camponeses, os objectos evocativos de actividades domésticas, agrárias, pastoris, marítimas e artesanais.
São idílicas e profundamente românticas as recordações faialenses de Frances Dabney, com o mar e a ilha sempre na sua memória. Aqui se fala de um anjo que recolhe amores perfeitos. Da Natureza que celebra a liberdade e o amor. Do gado “mugindo tristemente” na quietude da paisagem. De melodias que se ouvem por montes e vales. Das alegrias da vida e das mágoas do amor. De donzelas amorosas que pisam o tomilho, o poejo e o alecrim e conduzem vacas pachorrentas por cerrados e atalhos. Uma dessas donzelas, Narcisa de sua graça, sentada numa esteira, sorri docemente e escuta: a melodia do mar, a aproximação de pastores e de caçadores de coelhos.
Todo o livro é atravessado por gorjeios de pintassilgos, toutinegras, vinagreiras tentilhões, codornizes, milhafres, gaivotas, melros pretos e canários. E em cada história ecoa o rangido de portões de quinta, o latido dos cães e o tilintar dos chocalhos das vacas.
Depois temos Aura e Felício – amantes felizes no meio de uma paisagem bucólica feita de jardins, furnas, muros de lava, grandes portões, hortênsias, beladonas, begónias, rosas, lírios, papoilas, junças, musgo, fetos, queiró, moitas de urze, combros de canas, funcho, alcachofras, trepadeiras, silvados, tremoceiro, faveiras, trigo, milho, cevada, batata doce, vinhedos, figueiras, tamariteiros, pinheiros, faias… Estes elementos não estão no livro a servir de mero décor – estão lá porque funcionam como uma celebração (poética) da vida.
Aqui também se contam histórias. A de um velho pastor que conhece os mistérios, os perigos e os segredos da Serra. A de um jovem que, caminhando, canta e toca viola a pensar na sua amada. A de um barco em apuros, na iminência do naufrágio. E acontecem episódios festivos relacionados com o verdelho doirado e as vindimas do Pico. E lembranças amorosas da narradora vagueando na praia de Porto Pim. E há mulheres, de lenços garridos, que mondam o linho e conversam enquanto trabalham. E há pescadores que andam aos congros, abróteas, pargos e moreias e que, surpreendidos por uma tempestade, se abrigam numa furna das Caldeirinhas, no Monte da Guia.
Este é, por conseguinte, um livro sentimental, lírico e evocativo, escrito com apreciável frescura narrativa.
Esta frescura narrativa é bem captada por José Francisco Costa na tradução que empreendeu de forma eficaz e eficiente. Até porque sendo ele poeta, há nele o ouvido que escreve. Por exemplo, quando traduz “The wind sings in the tops of the long-needled pines (…)” por “O vento canta nas copas dos pinheiros” (pág. 203). Ou “(…) to the church bells pealing merrily across the fields”, por “o repique festivo dos sinos pelos campos fora” (pág. 234). Ou ainda, “(…) and the Belladonas blush with gladness” por “(…) e rubras de alegria ficam as beladonas” (pág. 204). Ainda outro exemplo: “(…) and the old women looked away and listened vaguely to all the distant sounds of the far-away town”, por “(…) e as velhas derramaram o olhar numa vaga escuta de todos os sons distantes vindos da vila ao longe” (págs. 233/4).
Ou seja, o tradutor conseguiu (re)criar a fluência e a imagética do discurso poético de Frances Dabney, alcançando apetecíveis efeitos de prosódia e musicalidade: “(…) ou, então, é um congro enorme, cujo corpo de aço lampeja e reluz na escuridão, como se fora o esbranquiçado minério líquido de uma fornalha, agora conservado em barras longas e sinuosas” (pág. 238).
Saudades é um livro de sinestesias, já que a sua autora soube captar os sentidos da alma açoriana: a paisagem, as pessoas, os sons, as melodias, os cheiros e os sabores. Em 1874 Frances Dabney saiu do Faial mas o Faial não saiu dela. Por isso escreveu este livro com os olhos da memória.
Victor Rui Dores
Recorde-se que, a par do trabalho diplomático, os Dabney desenvolveram papel de relevo em vários negócios, nomeadamente: o abastecimento de baleeiras norte-americanas; a exportação de laranja, de vinho e aguardente do Pico e de óleo de baleia; a caça à baleia; a pesca; a venda local de bens importados da América e de materiais de construção; o fornecimento de carvão aos vapores; a manutenção e reparação de navios; a indústria de moagem, entre outros.
Imbuída de um espírito filantrópico, a família Dabney tomou, na ilha do Faial, iniciativas pioneiras no âmbito da benemerência e de projectos inovadores a nível da agricultura e da indústria, da fotografia, das artes, das ciências e da educação, fontes de prestígio social que perdura até aos dias de hoje.
Foi neste contexto que Frances Dabney viveu e cresceu. Neta de Thomas Hickling, vice-cônsul dos Estados Unidos da América na ilha de S. Miguel, e filha de Sarah Hickling Webster (1821-1909) e de John Pomeroy Dabney (1821-1874), Francie (como era carinhosamente chamada por Roxana Lewis Dabney, sua tia que compilou os Anais da Família Dabney) manteve-se na cidade da Horta até 1874, altura em que completou 18 anos de idade. Com a morte do pai, ocorrida num acidente a bordo de um navio em viagem de regresso a Boston, mudou-se para aquela cidade com a mãe e duas das suas irmãs: Sarah e Ellen. Segundo Francis Rogers, em Atlantic Islanders, as três irmãs mantiveram-se solteiras e viveram juntas os últimos anos das suas vidas em Boston.
Vocacionada para a poesia, Frances deu à estampa, em 1903, o livro Saudades, escrito na língua inglesa e em edição familiar e privada de 100 exemplares.
Um exemplar deste livro chegou às mãos de Arthur Prescott Lothrop, que o mostrou ao seu colega José Francisco Costa, que por sua vez o deu a conhecer a um outro colega, Rylan Brenner, director do BCC´s Theatre Arts Program e que o viria a adaptar para teatro, tendo, em Setembro de 2002, levado a cabo um trabalho cénico com o título de Saudades: Dream of a Homeland.
José Francisco Costa tomou-lhe o gosto e traduziu – e bem – o referido livro para português. Conjugaram-se vontades e esforços e, passados que são 103 anos, Saudades é agora dado à estampa, em cuidada edição bilingue.
Chamaria a atenção do leitor para as ilustrações do livro, da autoria de Samuel Longfellow (1819-1892), aqui reproduzidas pela primeira vez. Segundo Sally Sapienza, estamos provavelmente perante alguns dos primeiros desenhos feitos por visitantes americanos às ilhas açorianas. E, a propósito, recorde-se que Samuel Longfellow era irmão de Henry Wadsworth Longfellow, eminente poeta americano do século XIX, tendo sido professor particular dos filhos de Charles Dabney, na Horta, durante os anos de 1843 e 1844 (um desses filhos era John Dabney, pai de Frances).
Constituído por 18 narrativas, Saudades é um livro de breves memórias e fugazes vibrações. São fragmentos de vida vivida e sonhada, de afectos, sentimentos e emoções. Frances lança olhares nostálgicos e retroactivos sobre um tempo vivido no microcosmo da ilha do Faial, revisitando lugares, pessoas e acontecimentos, associando a infância insular ao mito do Éden, isto é, a infância enquanto paraíso irremediavelmente perdido. Numa escrita da intimidade, tricotada pelas marcas de uma inocência assumida, a narradora fala-nos da alegria de sensações que ficaram enraizados na sua memória. Exprime-se através de uma prosa poética eivada de idealismo, tranquilidade e harmonia, e fala das pessoas com profundo amor e das paisagens com enorme fascínio.
Este livro é precisamente uma declaração de amor às ilhas do Faial e do Pico, sobre as quais a autora nos dá visões esplendorosas e impressionistas, carregando nas cores do idílico e do pitoresco, mas escrevendo sempre com apurado sentido estético e sensibilidade artística.
De resto Saudades reflecte aquilo que a família Dabney desenvolveu ao longo da sua estada no Faial: uma profunda relação de conhecimento, de amizade e de culto da paisagem e, sobretudo, do povo rural do Faial e do Pico. Este conhecimento directo e esta relação de empatia estão aqui bem patentes, sobretudo no que se refere à fruição paisagística daquelas ilhas (com especial relevo para a imponência da montanha do Pico) e à observação das cenas da vida quotidiana, do tipo etnológico, num registo muito interessante que marca as diferenças culturais dos açorianos: os artefactos e o vestuário dos camponeses, os objectos evocativos de actividades domésticas, agrárias, pastoris, marítimas e artesanais.
São idílicas e profundamente românticas as recordações faialenses de Frances Dabney, com o mar e a ilha sempre na sua memória. Aqui se fala de um anjo que recolhe amores perfeitos. Da Natureza que celebra a liberdade e o amor. Do gado “mugindo tristemente” na quietude da paisagem. De melodias que se ouvem por montes e vales. Das alegrias da vida e das mágoas do amor. De donzelas amorosas que pisam o tomilho, o poejo e o alecrim e conduzem vacas pachorrentas por cerrados e atalhos. Uma dessas donzelas, Narcisa de sua graça, sentada numa esteira, sorri docemente e escuta: a melodia do mar, a aproximação de pastores e de caçadores de coelhos.
Todo o livro é atravessado por gorjeios de pintassilgos, toutinegras, vinagreiras tentilhões, codornizes, milhafres, gaivotas, melros pretos e canários. E em cada história ecoa o rangido de portões de quinta, o latido dos cães e o tilintar dos chocalhos das vacas.
Depois temos Aura e Felício – amantes felizes no meio de uma paisagem bucólica feita de jardins, furnas, muros de lava, grandes portões, hortênsias, beladonas, begónias, rosas, lírios, papoilas, junças, musgo, fetos, queiró, moitas de urze, combros de canas, funcho, alcachofras, trepadeiras, silvados, tremoceiro, faveiras, trigo, milho, cevada, batata doce, vinhedos, figueiras, tamariteiros, pinheiros, faias… Estes elementos não estão no livro a servir de mero décor – estão lá porque funcionam como uma celebração (poética) da vida.
Aqui também se contam histórias. A de um velho pastor que conhece os mistérios, os perigos e os segredos da Serra. A de um jovem que, caminhando, canta e toca viola a pensar na sua amada. A de um barco em apuros, na iminência do naufrágio. E acontecem episódios festivos relacionados com o verdelho doirado e as vindimas do Pico. E lembranças amorosas da narradora vagueando na praia de Porto Pim. E há mulheres, de lenços garridos, que mondam o linho e conversam enquanto trabalham. E há pescadores que andam aos congros, abróteas, pargos e moreias e que, surpreendidos por uma tempestade, se abrigam numa furna das Caldeirinhas, no Monte da Guia.
Este é, por conseguinte, um livro sentimental, lírico e evocativo, escrito com apreciável frescura narrativa.
Esta frescura narrativa é bem captada por José Francisco Costa na tradução que empreendeu de forma eficaz e eficiente. Até porque sendo ele poeta, há nele o ouvido que escreve. Por exemplo, quando traduz “The wind sings in the tops of the long-needled pines (…)” por “O vento canta nas copas dos pinheiros” (pág. 203). Ou “(…) to the church bells pealing merrily across the fields”, por “o repique festivo dos sinos pelos campos fora” (pág. 234). Ou ainda, “(…) and the Belladonas blush with gladness” por “(…) e rubras de alegria ficam as beladonas” (pág. 204). Ainda outro exemplo: “(…) and the old women looked away and listened vaguely to all the distant sounds of the far-away town”, por “(…) e as velhas derramaram o olhar numa vaga escuta de todos os sons distantes vindos da vila ao longe” (págs. 233/4).
Ou seja, o tradutor conseguiu (re)criar a fluência e a imagética do discurso poético de Frances Dabney, alcançando apetecíveis efeitos de prosódia e musicalidade: “(…) ou, então, é um congro enorme, cujo corpo de aço lampeja e reluz na escuridão, como se fora o esbranquiçado minério líquido de uma fornalha, agora conservado em barras longas e sinuosas” (pág. 238).
Saudades é um livro de sinestesias, já que a sua autora soube captar os sentidos da alma açoriana: a paisagem, as pessoas, os sons, as melodias, os cheiros e os sabores. Em 1874 Frances Dabney saiu do Faial mas o Faial não saiu dela. Por isso escreveu este livro com os olhos da memória.
Victor Rui Dores
In: http://www.faialonline.com/?p=2294
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