Os dois primeiros livros impressos em língua portuguesa
José Barbosa Machado
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
Abstract
The first two books printed in the Portuguese language are the Sacramental (1488) and the Tratado de Confissom (1489). The first had three editions, two in the 16th century and one in the 15th century. There is a copy in the Library of Rio de Janeiro that is supposed to be the 1488’s edition referred in Inocêncio's Dictionary.
The only known copy of the Tratado de Confissom was, according to the colophon, printed in Chaves in 1489 and it is, in the absence of a safe proof concerning the precedent work, the first book printed in the Portuguese language. Through a computerized linguistic analysis, one can conclude that the text was written between the end of the 14th century and the beginning of the 15th century and it is an adaptation of one or more works in Castilian, which contradicts a great majority of the opinions presented so far.
In our study, we will compare the two works from the thematic and linguistic point of view, trying to verify similarities and differences, and stressing the importance of these works to the Portuguese language and culture.
1. Introdução
Ao contrário do que se possa pensar, a imprensa não esteve, no seu início, ao serviço da divulgação das obras clássicas greco-latinas, tão caras ao Renascimento dos séculos XV e XVI. Nesse erro cairá, por exemplo, Maria Helena da Rocha Pereira no volume I dos seus Estudos de Cultura Clássica. A distinta professora afirma que os incunábulos eram, «além da Bíblia, obras dos clássicos na sua maioria» (Pereira, 1988: 26). Infelizmente os dados conhecidos contrariam esta afirmação. De facto, a grande maioria dos livros impressos até 1500 é do foro religioso. As obras de autores clássicos são uma minoria.
Acerca deste facto diz o historiador francês Guy Bechtel: «Durante muito tempo pensou-se, numa versão confortável para o espírito mas completamente falsa, que Johann Gutenberg tinha sido movido pelo humanismo nascente. A imprensa teria sido o primeiro estádio do Renascimento e teria sido induzida pela necessidade de difundir os autores antigos (Horácio, Cícero), ou de espírito novo (Dante, Petrarca) que começavam, nessa época, a renovar as formas de pensamento. A análise das obras que publicou o mestre de Mogúncia, tal como a maior parte dos seus sucessores antes de 1500, infirma totalmente esta lenda e mostra, pelo contrário, que a nova arte difundiu sobretudo a palavra religiosa, isto é o discurso oficial. A Igreja foi o seu principal fornecedor de textos a imprimir, bem como o seu principal cliente durante muito tempo» (Bechtel, 1999: 82).
Este historiador lembra que o primeiro grande livro publicado em caracteres metálicos móveis foi a famosa Bíblia de Gutenberg, por volta de 1454-1455. «Os primeiros textos impressos ocidentais de data certa (Outubro de 1454) foram duas indulgências, isto é bilhetes de confissão que resgatavam os pecados mediante uma doação em dinheiro. Nos primeiros anos da invenção publicou-se ainda um Tratado sobre os artigos da fé e os sacramentos da Igreja de Tomás de Aquino (1459), outras indulgências, em 1461, 1462, 1463, 1464, uma Súmula de São Tomás em 1463, um João Nider em 1466, uma obra de Gerson sobre a polução nocturna em 1467, um Diálogo sobre o uso frequente da comunhão de Mateus de Cracóvia (1468), tudo obras ligadas à confissão dos pecados. A partir de 1468 começaram as inúmeras edições do Confessionale de Santo Antonino» (Ibidem: 82-83).
Os textos humanistas, por outro lado, «foram raríssimos nos vinte primeiros anos da imprensa, quase inexistentes nos dez primeiros. Geralmente tardios em relação às publicações religiosas, sairão sobretudo em Itália e não no país da invenção. Que influência poderiam ter eles exercido em Gutenberg? Entre os 120 primeiros livros impressos antes de 1468, contam-se 88, ou seja 73% com um carácter essencialmente religioso. A primeira obra antiga, um Cícero latino, aparece em 75ª posição. A sua publicação não deve pois ter sido considerada de uma grande urgência» (Ibidem: 83).
Dos primeiros dez livros conhecidos impressos em Portugal no século XV, apenas três não são de cariz religioso. São eles a Estoria do Mui Nobre Vespasiano Emperador de Roma (1496), a Grammatica Pastrane (1497) e o Regimento Proveitoso contra a Pestenença (1498?), aproximando-se por isso a média portuguesa (70% de obras religiosas) da avançada por Guy Bechtel para o período anterior a 1468 na Alemanha.
Ao contrário do que se possa pensar, a imprensa não esteve, no seu início, ao serviço da divulgação das obras clássicas greco-latinas, tão caras ao Renascimento dos séculos XV e XVI. Nesse erro cairá, por exemplo, Maria Helena da Rocha Pereira no volume I dos seus Estudos de Cultura Clássica. A distinta professora afirma que os incunábulos eram, «além da Bíblia, obras dos clássicos na sua maioria» (Pereira, 1988: 26). Infelizmente os dados conhecidos contrariam esta afirmação. De facto, a grande maioria dos livros impressos até 1500 é do foro religioso. As obras de autores clássicos são uma minoria.
Acerca deste facto diz o historiador francês Guy Bechtel: «Durante muito tempo pensou-se, numa versão confortável para o espírito mas completamente falsa, que Johann Gutenberg tinha sido movido pelo humanismo nascente. A imprensa teria sido o primeiro estádio do Renascimento e teria sido induzida pela necessidade de difundir os autores antigos (Horácio, Cícero), ou de espírito novo (Dante, Petrarca) que começavam, nessa época, a renovar as formas de pensamento. A análise das obras que publicou o mestre de Mogúncia, tal como a maior parte dos seus sucessores antes de 1500, infirma totalmente esta lenda e mostra, pelo contrário, que a nova arte difundiu sobretudo a palavra religiosa, isto é o discurso oficial. A Igreja foi o seu principal fornecedor de textos a imprimir, bem como o seu principal cliente durante muito tempo» (Bechtel, 1999: 82).
Este historiador lembra que o primeiro grande livro publicado em caracteres metálicos móveis foi a famosa Bíblia de Gutenberg, por volta de 1454-1455. «Os primeiros textos impressos ocidentais de data certa (Outubro de 1454) foram duas indulgências, isto é bilhetes de confissão que resgatavam os pecados mediante uma doação em dinheiro. Nos primeiros anos da invenção publicou-se ainda um Tratado sobre os artigos da fé e os sacramentos da Igreja de Tomás de Aquino (1459), outras indulgências, em 1461, 1462, 1463, 1464, uma Súmula de São Tomás em 1463, um João Nider em 1466, uma obra de Gerson sobre a polução nocturna em 1467, um Diálogo sobre o uso frequente da comunhão de Mateus de Cracóvia (1468), tudo obras ligadas à confissão dos pecados. A partir de 1468 começaram as inúmeras edições do Confessionale de Santo Antonino» (Ibidem: 82-83).
Os textos humanistas, por outro lado, «foram raríssimos nos vinte primeiros anos da imprensa, quase inexistentes nos dez primeiros. Geralmente tardios em relação às publicações religiosas, sairão sobretudo em Itália e não no país da invenção. Que influência poderiam ter eles exercido em Gutenberg? Entre os 120 primeiros livros impressos antes de 1468, contam-se 88, ou seja 73% com um carácter essencialmente religioso. A primeira obra antiga, um Cícero latino, aparece em 75ª posição. A sua publicação não deve pois ter sido considerada de uma grande urgência» (Ibidem: 83).
Dos primeiros dez livros conhecidos impressos em Portugal no século XV, apenas três não são de cariz religioso. São eles a Estoria do Mui Nobre Vespasiano Emperador de Roma (1496), a Grammatica Pastrane (1497) e o Regimento Proveitoso contra a Pestenença (1498?), aproximando-se por isso a média portuguesa (70% de obras religiosas) da avançada por Guy Bechtel para o período anterior a 1468 na Alemanha.
2. Os impressores dos dois primeiros livros em língua portuguesa
Os dois primeiros livros impressos em língua portuguesa são o Sacramental de Clemente Sánchez de Vercial (1488) e o Tratado de Confissom (1489). O primeiro teve quatro edições em Portugal, duas no século XV e duas no século XVI. Existe um exemplar na Biblioteca do Rio de Janeiro que se supõe pertencer à edição de 1488 referida no Primeiro Ensaio sobre a História Literária de Portugal (1845) de Francisco Freire de Carvalho e no volume II do Dicionário Bibliográfico Português (1876) de Inocêncio Francisco da Silva.
O único exemplar conhecido do Tratado de Confissom, descoberto em 1965 pelo Prof. Pina Martins, foi, de acordo com o cólofon, impresso em Chaves em 1489 e é, por falta de uma prova segura em relação à obra anterior, considerado o primeiro livro impresso em língua portuguesa conhecido. Através de uma análise informáticolinguística concluiu-se que o texto foi redigido entre finais do século XIV e princípios do século XV e é uma adaptação de uma ou mais obras em castelhano, o que vem contrariar grande parte das opiniões veiculadas até ao momento (cfr. Machado, 2003).
No que diz respeito à primeira edição portuguesa do Sacramental, entendemos que o incunábulo existente na Biblioteca do Rio de Janeiro é um dos exemplares da edição de 1488, corroborando por isso a opinião da Prof. Rosemarie Erika Horch, a primeira investigadora a debruçar-se sobre ele, e não dando razão a alguns críticos que, pelo facto de faltar ao incunábulo a página onde estaria o cólofon, têm colocado muitas reservas a esse respeito. De facto, temos notícia de quatro edições do Sacramental em língua portuguesa: uma impressa provavelmente em Braga antes de 1500 (1), uma de 1502 impressa em Lisboa, uma de 1539 impressa em Braga, de que existem diversos exemplares nas bibliotecas portuguesas, e uma de 1488 impressa em Chaves, cujo único
exemplar conhecido se havia perdido. Ao considerarmos o exemplar da Biblioteca do Rio de Janeiro como não pertencente a nenhuma destas edições, estaríamos a pressupor que existiria uma quinta edição, da qual não há qualquer notícia. Ora, uma obra desta importância, extremamente conhecida na Península Ibérica – ao contrário do Tratado de Confissom, que é uma obra pequena, para um público mais restrito e com uma divulgação pouco significativa –, não teria certamente passado despercebida aos bibliógrafos nacionais.
Por outro lado, o exemplar do Sacramental existente na biblioteca do Rio de Janeiro é sem dúvida anterior à edição feita em Lisboa em 1503. Primeiro pelo aspecto ainda rudimentar do tipo de caracteres, depois pelas soluções adoptadas pelo impressor na composição do texto (abreviaturas, sinais diacríticos, pontuação, etc.)
Vários investigadores têm ligado os dois primeiros livros impressos em língua portuguesa às oficinas de Antonio de Centenera em Zamora, Espanha, ou a impressores a ele ligados e que percorreram o noroeste da Península entre 1480 e 1492. Do ponto de vista geográfico, parece não haver dúvidas quanto à origem do impressor ou impressores de ambos os livros. No entanto, apenas o Tratado de Confissom partilha características relevantes com os incunábulos impressos por Centenera (cfr. Machado, 2003: 15-16).
Artur Anselmo, um dos mais destacados investigadores da história do livro em Portugal, depois de ter visto algumas das folhas de um exemplar do Breviário Compostelano impresso em 1484 em caracteres da oficina de Centenera, concluiu que «a família tipológica dos caracteres do Breviário é visivelmente aparentada com a do Sacramental português do século XV» (Anselmo, 1997: 31). Parece-nos, todavia, que esse facto, embora possa apontar para um impressor ligado à oficina de Centenera, não é suficiente para considerar que os dois livros impressos em Chaves, um em 1488 e outro em 1489, tenham sido impressos pela mesma pessoa ou pela mesma equipa de impressores.
A ser assim, é estranho que os dois livros, saídos da mão do mesmo impressor em datas muito próximas, sejam graficamente tão diferentes. As marcas de água do papel, o tipo de caracteres, algumas soluções adoptadas na composição do texto, como o uso do rr-perruña (2) no Sacramental e a ausência dele no Tratado de Confissom, certos sinais diacríticos e abreviaturas, as gralhas, o salto de linhas, as repetições, são razões que nos levam a pensar que o impressor dos dois livros não foi o mesmo.
Do ponto de vista gráfico, o Sacramental de 1488 e o Tratado de Confissom, comparados com incunábulos castelhanos anteriores, ou até da mesma época, são obras muito imperfeitas. O Sacramental impresso em Sevilha em 1478, por exemplo, tem uma pontuação praticamente regularizada e bastante lógica. A união e separação de palavras, as gralhas e as variações gráficas são diminutas. Não poderemos, no entanto, pretender que os dois primeiros livros impressos em português, apesar de tardios em relação a outras línguas europeias, sejam obras-primas de prelos ainda rudimentares e provavelmente operados por impressores com pouca experiência, e, no caso de os considerarmos do reino vizinho, desconhecendo praticamente a língua portuguesa.
Vários investigadores têm ligado os dois primeiros livros impressos em língua portuguesa às oficinas de Antonio de Centenera em Zamora, Espanha, ou a impressores a ele ligados e que percorreram o noroeste da Península entre 1480 e 1492. Do ponto de vista geográfico, parece não haver dúvidas quanto à origem do impressor ou impressores de ambos os livros. No entanto, apenas o Tratado de Confissom partilha características relevantes com os incunábulos impressos por Centenera (cfr. Machado, 2003: 15-16).
Artur Anselmo, um dos mais destacados investigadores da história do livro em Portugal, depois de ter visto algumas das folhas de um exemplar do Breviário Compostelano impresso em 1484 em caracteres da oficina de Centenera, concluiu que «a família tipológica dos caracteres do Breviário é visivelmente aparentada com a do Sacramental português do século XV» (Anselmo, 1997: 31). Parece-nos, todavia, que esse facto, embora possa apontar para um impressor ligado à oficina de Centenera, não é suficiente para considerar que os dois livros impressos em Chaves, um em 1488 e outro em 1489, tenham sido impressos pela mesma pessoa ou pela mesma equipa de impressores.
A ser assim, é estranho que os dois livros, saídos da mão do mesmo impressor em datas muito próximas, sejam graficamente tão diferentes. As marcas de água do papel, o tipo de caracteres, algumas soluções adoptadas na composição do texto, como o uso do rr-perruña (2) no Sacramental e a ausência dele no Tratado de Confissom, certos sinais diacríticos e abreviaturas, as gralhas, o salto de linhas, as repetições, são razões que nos levam a pensar que o impressor dos dois livros não foi o mesmo.
Do ponto de vista gráfico, o Sacramental de 1488 e o Tratado de Confissom, comparados com incunábulos castelhanos anteriores, ou até da mesma época, são obras muito imperfeitas. O Sacramental impresso em Sevilha em 1478, por exemplo, tem uma pontuação praticamente regularizada e bastante lógica. A união e separação de palavras, as gralhas e as variações gráficas são diminutas. Não poderemos, no entanto, pretender que os dois primeiros livros impressos em português, apesar de tardios em relação a outras línguas europeias, sejam obras-primas de prelos ainda rudimentares e provavelmente operados por impressores com pouca experiência, e, no caso de os considerarmos do reino vizinho, desconhecendo praticamente a língua portuguesa.
3. Questões linguísticas
Fazendo uma análise de algumas características linguísticas e comparando-as com obras dos séculos XIV e XV, podemos considerar que o Sacramental terá sido traduzido para português entre 1450 e 1488 e o Tratado de Confissom terá sido redigido entre finais do século XIV e princípios do século XV, como atrás ficou dito. A ortografia e a sintaxe encontram-se num nível mais aperfeiçoado no Sacramental do que no Tratado de Confissom. Passamos a referir algumas características linguísticas das duas obras.
A presença do j no Tratado de Confissom é praticamente residual (surgem apenas seis casos), ao contrário do que sucede no Sacramental, em que aparece com muita frequência, quer para representar o fonema consonântico palatal [¥], quer pararepresentar a vogal [i]. Formas como ja, ygreja, lonje, jn, ejus, enmijgos, jnjustiça, mjnistrar, qujnto, ssejam, prijgo, vijr, etc., são bastante frequentes. O mesmo sucede com o v minúsculo. À excepção dos numerais romanos, o v nunca aparece no Tratado de Confissom a representar, quer a consoante labiodental [v], quer a vogal [u]. No Sacramental, o v e o u são empregues indiferentemente. Vejamos os seguintes exemplos: viuer, viuificas, vsurario, duuida, etc.
O c cedilhado precedido de e e i é a regra geral no Sacramental. No Tratado de Confissom a sua frequência é bastante reduzida, sendo a regra geral a ausência da cedilha (a sílaba çe surge oito vezes e çi quatro, contra várias centenas das sílabas ce e ci não cedilhadas). Neste caso, ser-nos-á difícil considerar se a presença ou a ausência da cedilha é uma característica dos textos manuscritos que estiveram na base de cada uma das obras, ou se é uma característica derivada exclusivamente das opções do impressor.
A duplicação do s em início de palavra, como em ssegũdo, sse, sseu, ssom, ssem, etc., é bastante frequente no Sacramental, havendo apenas dois casos no Tratado de Confissom. O mesmo sucede em relação à duplicação do r em início de palavra, como em rresuçitou, rreyno, rremuneraçõ, rrẽdas, rrazõees, etc. O R maiúsculo para indicar a vibrante velarizada, quer em início de frase, quer a meio, como em Raçional, Rudeza, Razom, Raçom, Rogar, Remijr, Remissom, etc., frequente no Sacramental, está totalmente ausente no Tratado de Confissom.
As formas arcaicas são muito menos frequentes no Sacramental. Enquanto que no Tratado de Confissom aparecem unicamente formas do verbo leixar, no Sacramental, ora aparecem formas de leixar, ora de deixar. A terminação verbal em -des da segunda pessoa do plural é rara no Sacramental. A terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo ser, ao contrário do que se passa no Tratado de Confissom, não apresenta variantes no Sacramental, surgindo sempre sob a forma he.
Do ponto de vista gráfico e fonético, o Sacramental é mais estável, havendo menos variantes da mesma palavra. Estas, quando existem, devem-se quase exclusivamente à representação das nasais (vogal nasal grafada com til ou precedida de n ou m) e do i, que ora é representado por i, ora por j ou y. As vogais geminadas de origem etimológica ou por falsa analogia são menos abundantes no Sacramental, mantendo-se em palavras como christaão, maão e pouco mais, sendo uma prova cabal do facto de o texto português do Sacramental ser bastante posterior em relação ao texto do Tratado de Confissom.
As abreviaturas utilizadas pelo compositor do Sacramental são substancialmente diferentes das abreviaturas que surgem no Tratado de Confissom, sendo este facto mais um argumento para considerar que as duas obras não foram impressas pelo mesmo impressor. Por exemplo, no Tratado de Confissom as sílabas co-, com- e con- nunca aparecem grafadas com uma abreviatura; o verbo ser nunca aparece reduzido à abreviatura þ; a forma do verbo ser he nunca aparece transcrita com a abreviatura ¢.
Estes três casos são frequentíssimos ao longo de todo o Sacramental, surgindo várias ocorrências em quase todas as colunas. A ser o mesmo impressor ou o mesmo compositor das duas obras, a utilização destas abreviaturas seria certamente similar.
Comparando linguisticamente a edição do Sacramental de 1488 com a edição impressa em Lisboa em 1502, verificamos que a primeira representa um estado da língua escrita anterior, típica da segunda metade do século XV. No Sacramental de Chaves há maior número de arcaísmos (é exemplo disso a substituição do pronome aqueste pelo pronome este na edição de 1502; a substituição dos verbos acaecer por acontecer, quedar por ficar, quitar por tirar, etc.), assim como maior frequência de consoantes etimológicas em palavras como dapno e escpritura. O pronome qualquer aparece separado em todas as suas ocorrências, o que não acontece na edição de 1502.
A pontuação é caótica, assim como o uso de maiúsculas. A utilização do m e do n nasais é mais regular na edição de 1502. O mesmo sucede com o uso do j, do u, do v, do r, do s e do h.
Devido à repetição de grande parte das lacunas existentes na edição de 1488 na edição de 1502, poderemos avançar a hipótese de o impressor João Pedro de Cremona se ter servido da primeira, embora não exclusivamente, uma vez que muitas das gralhas foram corrigidas, exigindo muitas delas o cotejo com uma versão castelhana mais perfeita, como é o caso das duas edições de Sevilha. A edição de 1539 impressa em Braga por Pedro de la Rocha por ordem do Infante D. Henrique, arcebispo de Braga, baseou-se na edição de 1502, tendo no entanto sofrido algumas emendas.
4. A instrução do clero
Do ponto de vista literário e ideológico, o Sacramental é mais pobre do que o Tratado de Confissom. Clemente Sánchez de Vercial limita-se a transcrever, quase sempre em forma de lista, as normas retiradas dos textos canónicos, fundamentados com a autoridade da Bíblia e dos autores cristãos. Raramente arrisca uma opinião própria, e quando o faz, ou é de uma forma inócua e curta, ou parafraseia aquilo que é a opinião da Igreja. Já o autor do Tratado de Confissom se espraia em longas considerações acerca do assunto que vai tratando, sendo, do ponto de vista literário e ideológico, mais interessante.
Parece-nos que o autor do Tratado de Confissom era, além de um estudioso muito bem informado em questões teológicas e filosóficas, um pensador. Clemente Sánchez, sem descorarmos o seu grande conhecimento teológico e filosófico, que facilmente se comprova olhando para as obras e os autores citados, era um compilador. Assim sendo, o Tratado de Confissom é um verdadeiro tratado filosófico-casuístico acerca do sacramento da confissão e o Sacramental é um manual onde se pode encontrar todo o catecismo católico apoiado naquilo que a Igreja chama revelação (os textos bíblicos) e tradição (os autores cristãos e as normas eclesiásticas).
Tanto o Tratado de Confissom como o Sacramental foram impressos numa tentativa de preencher graves lacunas na instrução do clero. Lendo os documentos exarados pelos sínodos diocesanos do século XV, quer em Portugal, quer em Castela, verificamos que a ignorância do clero era endémica. Os bispos procuraram pôr cobro a isso através de algumas medidas, sendo uma delas a impressão de manuais em romance (português e castelhano) que todos os clérigos deveriam ter, uma vez que a grande maioria, embora soubesse ler latim, não compreendia o que lia e não podia por isso exercer convenientemente o seu múnus apostólico.
O autor do Sacramental justifica do seguinte modo a elaboração da obra:
«E por quanto por nossos pecados no tempo dagora muytos saçerdotes que ham curas de almas nõ soomẽte son ynorãtes pera jnstruir e ensynar a fe e crẽça e as outras coussas que perteçen a nossa saluaçan, mas ajnda nõ saben o que todo boo christaão deue saber nem som jnstruydos nẽ ensynados em a fe christãa segũdo deuiam, e o que he mays prigosso e danosso, algũus nõ sabẽ nẽ entẽdẽ as escryturas que cada dya hã de leer e trautar. E porẽde, eu Climẽte Sanchez de Vercial, bacharel ẽ leis, arcydiago de Valdeiras em a jgreja de Leõ, ajnda que pecador e indino, propuse de trabalhar de fazer hũa breue copilaçom das coussas que neçesarias som aos saçerdotes que han curas de almas».
O Tratado de Confissom tinha um objectivo mais específico: a instrução dos confessores, fossem eles curas de almas dependentes de um bispo diocesano ou sacerdotes de ordens religiosas com responsabilidades na confissão.
O Tratado de Confissom tinha um objectivo mais específico: a instrução dos confessores, fossem eles curas de almas dependentes de um bispo diocesano ou sacerdotes de ordens religiosas com responsabilidades na confissão.
5. Conclusão
Os dois primeiros livros impressos em língua portuguesa têm merecido pouca atenção dos investigadores, quer do ponto de vista linguístico, quer do ponto de vista literário e histórico-cultural. Grande parte do que se tem dito acerca das duas obras é marginal e mera repetição do que uns quantos disseram, não havendo, depois dos estudos preliminares do Prof. Pina Martins para o caso do Tratado de Confissom (1973) e da Prof. Rosemarie Erika Horch para o caso do Sacramental (1985), um esforço para obter mais informações ou propor novas hipóteses que possam contribuir para um melhor conhecimento das obras e do contexto em que as mesmas surgiram e foram impressas.
Os linguistas têm ignorado estas obras, que são sem dúvida um marco importante na história da língua portuguesa, não só por serem as primeiras obras impressas na nossa língua, mas pelo seu valor intrínseco ao representarem um determinado período da língua, em particular o do século XV, que é ainda relativamente pouco conhecido no que diz respeito a características de variabilidade e de coesão.
Nenhum especialista em literatura medieval, tanto quanto até ao momento foi possível apurar, se debruçou sobre elas. Sendo obras de cariz religioso, poderá esse facto levar certos meios académicos a desconsiderá-las a favor de outras ideologicamente menos marcadas? Não gostaríamos de acreditar nisso. Tanto mais que na Idade Média, todas as obras partilham dos mesmos valores religiosos, a chamada catolicidade ou, por outras palavras, a universalidade.
As duas obras são um manancial importante de informações sobre o quotidiano do homem medieval peninsular que tem sido sistematicamente ignorado pelos historiadores, preferentemente agarrados a documentos foraleiros e notariais, bastante mais diminutos em informações. De facto, quer o Tratado de Confissom, quer o Sacramental, são verdadeiros depositários da forma de viver do homem medieval em todos os períodos da sua vida e em todos os momentos do ano, abarcando temas como a alimentação, as relações familiares, as relações sociais, a relação com Deus e o sagrado, a sexualidade, o trabalho, o descanso, a saúde e a doença. Dificilmente se encontrarão documentos, do ponto de vista sociológico, tão completos como estes.
Terminamos, pois, recomendando aos especialistas das várias áreas das ciências humanas e sociais, e especialmente aos linguistas, aos investigadores em literatura medieval e aos historiadores, que não continuem a ignorar estas duas obras, que são sem dúvida um marco importante da língua e da cultura portuguesas.
1 Pensava-se que um exemplar existente na Biblioteca Nacional pertencia à edição de 1539. Valentina Sul Mendes provou em 2004 que afinal se tratava de uma outra edição até ao momento desconhecida, impressa provavelmente na última década do século XV.
2 É o uso de um molde para os dois rr.
Bibliografia
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ANSELMO, Artur (1997), Estudos de História do Livro, Lisboa, Guimarães Editores.
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no século XV», em Tratado de Confissom, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda (o mesmo estudo foi impresso num volume à parte em 1974).
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/ IBL, vol. I.
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Nacional, vol. II.