As descobertas científicas situam-se às vezes numa teia de acontecimentos comezinhos, anedóticos e até burlescos. Empregando a expressão «descobertas científicas» num artigo sobre o Tratado de Confissom, não me proponho reivindicar o diploma de descobridor do primeiro livro, até hoje conhecido, impresso na nossa língua, embora identificar queira dizer, neste contexto, descobrir. O agricultor que, trabalhando numa sua quintarola, desenterra um mármore grego ou romano tem méritos indiscutíveis, mas só o arqueólogo que, pela sua ciência e experiência, seja capaz de definir a caracterização estilística da estátua e situá-la rigorosamente na sua época, pode ser tido como seu verdadeiro descobridor. O homem que a encontrou nas leivas da sua várzea limitou-se a desenterrá-la.
Pediram-me um artigo sobre o Tratado de Confissom. Redigilo não seria talvez muito difícil, já que o estudei longamente e com grande atenção e sobre ele tenho publicado trabalhos vários e, até, um largo estudo que vai dentro de alguns meses ser editado em tradução francesa no meu livro Humanisme et Renaissance — Les deux regards de Janus. Mas a história deste achado bibliográfico nunca foi contada. Valerá a pena fazê-lo hic et nunc.
Pediram-me um artigo sobre o Tratado de Confissom. Redigilo não seria talvez muito difícil, já que o estudei longamente e com grande atenção e sobre ele tenho publicado trabalhos vários e, até, um largo estudo que vai dentro de alguns meses ser editado em tradução francesa no meu livro Humanisme et Renaissance — Les deux regards de Janus. Mas a história deste achado bibliográfico nunca foi contada. Valerá a pena fazê-lo hic et nunc.
1. Nos primeiros meses do já longínquo ano de 1965, corria insistentemente, entre os alfarrabistas de Lisboa, o rumor de se haver encontrado um incunábulo em língua portuguesa anterior ao De uita Christi (Lisboa, 1495), livro que era, até então, considerado como a primeira obra impressa no nosso idioma. O De uita Christi é um cimélio extraordinário por uma série de razões que concorrem neste genuíno momento da nossa prototipografia: 1.° — O seu formato, sendo o in-folio, impõe-no imediatamente como um livro grande, sendo ao mesmo tempo um grande livro; 2.° — A sua beleza gráfica e iconográfica é excepcional (os caracteres são talhados num gótico robusto e claro, impressos a duas colunas num papel consistente e resistente, enquanto as gravuras, pela sua nobreza estilística e pela sua inspiração expressiva são dignas de um grandíssimo artista); 3.° — Apesar do título latino, o texto é em vernáculo e é um documento valiosíssimo para o estudo do nosso idioma, então a sair da sua infância. Seria possível que outro livro, sem a beleza daquele, viesse destroná-lo como primeira obra impressa, nem em hebraico nem em latim mas na nossa língua? Reflectia, de mim para comigo, que seria lamentável que um opúsculo insignificante pelas suas características gráficas — se esse fosse verdadeiramente o caso — colocasse em segundo lugar na ordem da hierarquia cronológica aquele que é sem discussão um dos mais belos cimélios de toda a tipografia europeia. Por outro lado, porém, eu era forçado a reconhecer que, se isso ocorresse, ter-se-ia a compensação de um achado de extraordinário valor pelas perspectivas novas que, assim, poderiam abrir-se.
Alguns livreiros amigos segredavam-me, contudo, que se tratava de um pretenso incunábulo ou de um pseudo incunábulo — para não dizer um incunábulo falso. Perante estes rumores, com a minha experiência e o meu conhecimento da tipografia quatrocentista, não hesitava exprimir o meu cepticismo. De facto nada é mais difícil, em termos de restauro arqueológico, do que forjar um incunábulo a partir dos materiais gráficos do nosso tempo, dando-lhe, no século XX, todos os caracteres de um livro do século XV. Rejuvenescer uma amadurecida matrona de 70 anos fazendoa recuar ao viço de mulher trintona é decerto menos difícil do que efectuar, com êxito, a operação de falsificar um livro nosso contemporâneo dotando-o da frescura, da pátina e da beleza de um cimélio do Quattrocento. Como quer que seja, não sabendo como proceder para apurar a verdade e remontar às origens, fui aguardando. Tinha a certeza íntima de que, mais tarde ou mais cedo, o livro viria ao meu encontro. Os objectos nobres procuram, com efeito, e acabam por encontrar as pessoas que os amam: eu não alimentava qualquer dúvida a esse respeito. Na Lisboa de 1965 — e já, de verdade, na Lisboa de 1960 — havia talvez estudiosos mais sabedores do que eu no domínio da bibliologia e da bibliografia; mas eu reivindicava, com a minha juventude de então — afirmativa e ingénua —, o primeiro lugar em termos de amor autêntico consagrado aos livros antigos: na minha incomensurável suficiência, colocava o Comandante Ernesto Vilhena em segundo lugar e o Visconde da Trindade em terceiro. A única diferença era apenas este insignificante pormenor: eles eram ricos ou, pelo menos, suficientemente abastados para poderem adquirir tesouros bibliográficos que conheciam menos bem, enquanto eu vivia apenas, junto de minha pequena família, com um salário que mal bastava para satisfazer a renda do apartamento, como era, então, o de um segundo assistente da Universidade de Lisboa. A magreza dos recursos tinha, porém, a vantagem de aguçar a inteligência na pesquisa ou procura de meios ortodoxos que permitissem não só manter um nível decoroso de vida mas também poder, através de um jogo de trocas bibliográficas entre a Itália, a França e Portugal, dar-me a ilusão de rivalizar com aqueles potentados da bibliografia lusíada. Nos inícios de Maio de 1965 visitei o livreiro Américo Francisco Marques, sito então num primeiro andar da Rua da Misericórdia. Era uma manhã radiosa, com um céu cristalinamente azul. Depois dos cumprimentos cordiais, formulei a pergunta que ritualmente vinha repetindo desde Março desse ano: «Sabe da existência de um incunábulo em português, do qual se diz ser anterior ao De uita Christis?» O meu interlocutor hesitou, numa pausa. Mesmo antes que tivesse murmurado um só monossílabo, compreendi que tinha ido bater à porta justa. Com um sorriso entre enigmático e malicioso, abriu uma gaveta, estendeu-me uma página de fotocópia e, acompanhando o gesto franco com uma inflexão interrogativa, perguntou: «Será este o documento que procura?»
Devorei com os olhos as duas colunas da página, impressas num gótico cansado. Lá estava o colofão redigido na nossa língua: «Este tratado de confissom se aca / bou na uila de chaues aos oyto di / as do mes de agosto. Ano de mill / e quatrocentos e oytenta e noue anos: / Laus tibi xp~e. / Deo gratias / Amen» /.Li, reli, voltei a ler e a reler. Respondi ao meu amigo livreiro que sim, que era aquele o documento que eu procurava. No meu entusiasmo, afirmei logo que era autêntico e que desejava dar notícia da sua existência.
Américo Francisco Marques procurou refrear-me, esboçando o gesto de quem pensa que tudo acaba por estar certo, se for feito a seu tempo e sem pressas. Não é que ele tenha uma concepção panglossiana da vida. Sereno e confiante, da serenidade e confiança que exornam geralmente a personalidade do self made man, prometeu-me que dentro de pouco tempo apresentaria os dois indivíduos que eu desejava conhecer: o incunábulo e o seu dono. Fiquei aguardando.
Dias depois, pelo telefone, marcou-se um encontro a quatro com o cimélio, o seu proprietário, Américo Marques e o autor destas linhas. Na espectativa, eu perguntava-me a mim mesmo se não podia nascer, deste encontro a quatro, uma pequena revolução cultural para o nosso século XV.
Não recordo exactamente em que dia ocorreu este encontro, mas posso situá-lo com uma pequena margem de erro: teve lugar entre o dia 8 e o dia 12 de Maio, às 16 horas, na própria livraria de Américo Francisco Marques. Às 15,45 horas subi de três em três os degraus da escada que levava ao primeiro andar e abri a porta, sobre a direita. O livreiro disse-me que Tarcísio Trindade — pois era este o nome do feliz possuidor do cimélio — seria pontual.
Este jovem educadíssimo chegou à hora marcada, desembrulhou um conjunto de fólios in-quarto sem encadernação e depô-los nas minhas mãos. Todos os homens que se consagram à actividade intelectual têm pelo menos uma vez na vida, um átimo de graça em que estão convencidos de estarem possuídos por um espírito paraclético ou habitados fugazmente por uma iluminação indefinida. Foi-me dada uma tal experiência (que repetia momentaneamente uma outra que me fôra facultada em Florença, às 7 horas da manhã, de um dia de Junho de 1949, entre il Duomo e il Battistero) no próprio instante da primeira impressão táctil com o incunábulo: senti a sua autenticidade. (Em Florença não fora só a revelação fugacíssima do déjà vu, mas algo de mais profundo). Ao contacto com o papel daquele venerável livro, que completará o seu milénio dentro de alguns meses, a perturbação manifestou-se no tremor das mãos: tinha uma certeza intelectual bem sólida de que se tratava de uma «descoberta». Mas esta não estava ainda cumprida, era apenas pressentida. Havia, agora, que estabelecer um trânsito lógico, através de argumentos concretos, da fé que arrasta montanhas para a razão que no-Ias ajuda realmente a transpor, subindo e descendo. Li em diagonal algumas páginas, observei em contra-luz a filigrana do papel, percorri o latim litúrgico das três últimas páginas (as outras todas são em vernáculo) a precederem o colofão, tomei notas com atenção meticulosa e propus, a Tarcísio Trindade, um do ut des que fosse reciprocamente útil: eu desejava estudar o livro, gratis et pro amove scientiae; ele, como mercante, era legítimo que alcançasse o seu ganho. Pedi uma fotocópia e comprometi-me a escrever um artigo de fundo no Diário de Notícias, o jornal português então mais lido e prestigiado (como suponho que é ainda hoje). Tarcísio Trindade residia então em Alcobaça e não escondia o seu desejo de vender o livro. Disse-lhe que, com o meu artigo, ía logo vendê-lo. «Por quanto?», perguntou, entre curioso e subtilmente ingénuo. «Pode pedir o que quiser», repliquei; «mas não ultrapasse os quatrocentos contos». Era, em 1965, uma quantia elevada (hoje não passa de um montante modesto, que mal dá para adquirir o De rebus Emanuelis gestis de D. Jerónimo Osório, de 1571, que é obra importante mas não edição muito rara). Tarcísio Trindade, como livreiro, estava então nos seus princípios. Era um bibliógrafo inteligente, culto e informado, mas sem a experiência que hoje tem, e aprestava-se a constituir família. Se lhe fosse dado fabricar, com a venda da obra umas centenas de contos, seria esse um bom primeiro passo para que o matrimónio começasse a converter-se em património. Despedimo-nos com a promessa para muito breve, de um artigo acerca do Tratado de Confissom. O mês de Maio, para um jovem assistente universitário, era, porém, nesses tempos, um período difícil. Impunha-se corrigir e classificar todos os exames escritos, pois se aproximava o momento das reuniões dos conselhos de docentes correspondendo a um determinado ano de cada secção. Por outro lado, não tendo ainda em meu poder a fotocópia do livro e dispondo apenas das notas que redigira durante os escassos sessenta minutos do encontro, fui tomado por um certo receio. Deixei, pois, correr alguns dias, dedicados à tarefa de corrigir as provas dos alunos, sem me ocupar do livro.
Devorei com os olhos as duas colunas da página, impressas num gótico cansado. Lá estava o colofão redigido na nossa língua: «Este tratado de confissom se aca / bou na uila de chaues aos oyto di / as do mes de agosto. Ano de mill / e quatrocentos e oytenta e noue anos: / Laus tibi xp~e. / Deo gratias / Amen» /.Li, reli, voltei a ler e a reler. Respondi ao meu amigo livreiro que sim, que era aquele o documento que eu procurava. No meu entusiasmo, afirmei logo que era autêntico e que desejava dar notícia da sua existência.
Américo Francisco Marques procurou refrear-me, esboçando o gesto de quem pensa que tudo acaba por estar certo, se for feito a seu tempo e sem pressas. Não é que ele tenha uma concepção panglossiana da vida. Sereno e confiante, da serenidade e confiança que exornam geralmente a personalidade do self made man, prometeu-me que dentro de pouco tempo apresentaria os dois indivíduos que eu desejava conhecer: o incunábulo e o seu dono. Fiquei aguardando.
Dias depois, pelo telefone, marcou-se um encontro a quatro com o cimélio, o seu proprietário, Américo Marques e o autor destas linhas. Na espectativa, eu perguntava-me a mim mesmo se não podia nascer, deste encontro a quatro, uma pequena revolução cultural para o nosso século XV.
Não recordo exactamente em que dia ocorreu este encontro, mas posso situá-lo com uma pequena margem de erro: teve lugar entre o dia 8 e o dia 12 de Maio, às 16 horas, na própria livraria de Américo Francisco Marques. Às 15,45 horas subi de três em três os degraus da escada que levava ao primeiro andar e abri a porta, sobre a direita. O livreiro disse-me que Tarcísio Trindade — pois era este o nome do feliz possuidor do cimélio — seria pontual.
Este jovem educadíssimo chegou à hora marcada, desembrulhou um conjunto de fólios in-quarto sem encadernação e depô-los nas minhas mãos. Todos os homens que se consagram à actividade intelectual têm pelo menos uma vez na vida, um átimo de graça em que estão convencidos de estarem possuídos por um espírito paraclético ou habitados fugazmente por uma iluminação indefinida. Foi-me dada uma tal experiência (que repetia momentaneamente uma outra que me fôra facultada em Florença, às 7 horas da manhã, de um dia de Junho de 1949, entre il Duomo e il Battistero) no próprio instante da primeira impressão táctil com o incunábulo: senti a sua autenticidade. (Em Florença não fora só a revelação fugacíssima do déjà vu, mas algo de mais profundo). Ao contacto com o papel daquele venerável livro, que completará o seu milénio dentro de alguns meses, a perturbação manifestou-se no tremor das mãos: tinha uma certeza intelectual bem sólida de que se tratava de uma «descoberta». Mas esta não estava ainda cumprida, era apenas pressentida. Havia, agora, que estabelecer um trânsito lógico, através de argumentos concretos, da fé que arrasta montanhas para a razão que no-Ias ajuda realmente a transpor, subindo e descendo. Li em diagonal algumas páginas, observei em contra-luz a filigrana do papel, percorri o latim litúrgico das três últimas páginas (as outras todas são em vernáculo) a precederem o colofão, tomei notas com atenção meticulosa e propus, a Tarcísio Trindade, um do ut des que fosse reciprocamente útil: eu desejava estudar o livro, gratis et pro amove scientiae; ele, como mercante, era legítimo que alcançasse o seu ganho. Pedi uma fotocópia e comprometi-me a escrever um artigo de fundo no Diário de Notícias, o jornal português então mais lido e prestigiado (como suponho que é ainda hoje). Tarcísio Trindade residia então em Alcobaça e não escondia o seu desejo de vender o livro. Disse-lhe que, com o meu artigo, ía logo vendê-lo. «Por quanto?», perguntou, entre curioso e subtilmente ingénuo. «Pode pedir o que quiser», repliquei; «mas não ultrapasse os quatrocentos contos». Era, em 1965, uma quantia elevada (hoje não passa de um montante modesto, que mal dá para adquirir o De rebus Emanuelis gestis de D. Jerónimo Osório, de 1571, que é obra importante mas não edição muito rara). Tarcísio Trindade, como livreiro, estava então nos seus princípios. Era um bibliógrafo inteligente, culto e informado, mas sem a experiência que hoje tem, e aprestava-se a constituir família. Se lhe fosse dado fabricar, com a venda da obra umas centenas de contos, seria esse um bom primeiro passo para que o matrimónio começasse a converter-se em património. Despedimo-nos com a promessa para muito breve, de um artigo acerca do Tratado de Confissom. O mês de Maio, para um jovem assistente universitário, era, porém, nesses tempos, um período difícil. Impunha-se corrigir e classificar todos os exames escritos, pois se aproximava o momento das reuniões dos conselhos de docentes correspondendo a um determinado ano de cada secção. Por outro lado, não tendo ainda em meu poder a fotocópia do livro e dispondo apenas das notas que redigira durante os escassos sessenta minutos do encontro, fui tomado por um certo receio. Deixei, pois, correr alguns dias, dedicados à tarefa de corrigir as provas dos alunos, sem me ocupar do livro.
2. No dia 15 ou 16 Tarcísio Trindade chamou-me ao telefone, da sua casa de Alcobaça. Desejava saber se já tinha escrito o artigo e quando seria publicado. Disse-lhe da grave responsabilidade que representava, a nível público, anunciar uma descoberta tão importante e revolucionária. Não escreveria o artigo se me não fosse dado poder dispor da obra durante, pelo menos, três horas de estudo. Pusemo-nos de acordo para um novo encontro em minha casa, das 21 às 24 horas do dia 18 de Maio. Se retive esta data, é porque, nesse dia, proferi, no teatro do Palácio Foz, uma conferência sobre a Divina Commedia de Dante, pois em 1965 celebrava-se o sexto centenário do nascimento do grande Poeta.
Foi-me dado, no serão desse dia, fazer um exame aprofundado do paleótipo. Tomei novas notas, desenhei cuidadosamente a marca de água, para a confrontar com as que Briquet reproduz no seu célebre manual e fiquei de posse de uma xerocópia. O artigo foi escrito de jacto, entusiasticamente. O título apareceu com pouco rigor, porque se não trata, de facto, do primeiro incunábulo português, mas do primeiro incunábulo em português. Escrevi a Natércia Freire uma carta evidenciando a importância extraordinária do anúncio: o Tratado de Confissom antecipava deseis anos a entrada da tipografia de língua portuguesa no nosso país. Além disso, abriam-se novos horizontes ao estudo da nossa incunabulística. Se, em 1965, se descobria um livro quatrocentista anterior ao De uita Christi, totalmente ignorado por todos os bibliógrafos portugueses e do qual não havia rastro em nenhum grande reportório bibliográfico, quem pode garantir-nos que não existirão outros livros impressos em português, e porventura mais antigos? Natércia Freire, que é uma mulher cultíssima, além de muito inteligente — e é igualmente poeta, de uma sensibilidade delicada e subtil, portanto capaz de entender e de sentir o significado espiritual de uma tal descoberta —, mandou logo publicar o artigo que apareceu em fundo no Diário de Notícias de 25 de Janeiro desse ano de 1965.
Cumprira o prometido e, absorvido pelas reuniões de final do ano, não saía de casa. Os diários desse final de mês não falavam, porém, senão do Tratado de Confissom. Raúl Rego, distinto bibliófilo — e elemento muito activo na militância contra a situação política — soube aproveitar os factos então ocorridos para pôr em causa a «negligência» do poder. Acontecera que uma senhora adquirira por 400 000 escudos o Tratado de Confissom que Tarcísio Trindade e Américo Marques entregaram ao livreiro mais prestigioso de Lisboa, João Rodrigues Pires, director de O Mundo do Livro. A pessoa que, em troca dos quatrocentos contos em bilhetes de mil escudos, recebera o documento, desapareceu tendo deixado ao livreiro um endereço desconhecido e, como é fácil de adivinhar, não correspondendo à verdade. A polícia ocupou-se do acontecimento e acabou por deslindar a meada. Teria o livro sido vendido para o estrangeiro? — perguntava Raúl Rego. Pelo que me diz respeito, antes de enviar o artigo ao jornal, dirigi uma carta ao Director Geral do Ensino Superior anunciando-lhe o achado e exortando-o a adquirir a obra para a Biblioteca Nacional. Estava, portanto, tranquilo com a minha consciência. Aquele alto funcionário do Ministério deve ter consultado as «autoridades» neste domínio bibliográfico. Esses ilustres técnicos tranquilizaram-no decerto com um discursozinho mais ou menos deste teor: «Senhor Director Geral: Não dê V. Ex.ª ouvidos a palavreado sem consistência. O P.M. é um moço cheio de entusiasmo e de muitas leituras, mas, neste caso, tomou a nuvem por Juno. Não dê importância, porque o nosso primeiro livro impresso em português é o De uita Christi, não tenha disso a menor dúvida. Consulte o patriarca da nossa Bibliografia, Barbosa Machado. Leia Inocêncio. Veja no Samodães e no Ameal. Leia o Brunet, o Hain, o Graesse, o Polain, o GesamtKatalog. Nenhum destes clássicos menciona o Tratado de Confissom. Não duvide, Excelência: trata-se de um presunto incunábulo». Um comunicado oficial falou, de facto, do «presunto incunábulo». O comprador tinha sido um culto banqueiro, o Dr. Miguel Gentil Quina, possuidor de uma excelente livraria, o qual, não desejando que se soubesse quem era o comprador, encarregou uma sua secretária de agir por ele. Acabou por ir pessoalmente ao Ministério para pôr à disposição das autoridades «o corpo do delito» per amor di patria.
Uns meses depois o cimélio foi declarado de interesse e arrolado. O jovem que identificara o livro ficou, naturalmente, de lado. Jorge Peixoto que, desde a primeira hora, manifestara a sua concordância, veio visitar-me para me dizer que, não conhecendo bem a obra, se sentia mortificado por ser chamado a participar num tal acto. Tranquilizei-o: «pour être heureux, vivre cache». Era natural que fossem chamados ao Ministério os representantes da ciência bibliográfica oficial.
O artigo de 25 de Maio desencadeou, portanto, um debate e provocou uma certa efervescência em meios cultos. Na Universidade os reflexos foram diversos e graduados. Os professores mais preparados como Virgínia Rau e Lindley Cintra manifestaram logo um grande interesse pelo achado. A historiadora, que não simpatizava muito comigo, não sei se pelas minhas relações com a cultura estrangeira, se por eu não ser da sua escola nem seguir muito as suas directrizes de história económica, convidou-me a orientar um seminário no seu departamento. Lindley Cintra desejou colaborar, com Virgínia Rau, com o padre Mário Martins e comigo, num estudo a quatro acerca do cimélio (estudo que nunca foi possível levar a bom termo): Virgínia Rau estudaria aspectos do contexto histórico em que aparecera o livro; Lindley Cintra, grande filólogo, ocupar-se-ia dos lados linguísticos; Mário Martins da parte casuística e eu do tema bibliográfico. Sendo, dos quatro, o menos competente, mas porventura o mais diligente, foi-me forçoso estudar sozinho todos esses aspectos na edição publicada em 1973, como primeiro livro de uma colecção, os Portugaliae Monumenta Typographica, que a Imprensa Nacional se comprometeu a editar e os acontecimentos de 1974-1975, estabelecendo, com alguma confusão, um regime democrático em Portugal, prejudicaram. Não é que a Democracia seja incompatível, antes pelo contrário, com a cultura antiga e moderna. Mas nem sempre os homens que se dizem democráticos o são verdadeiramente. Uma tal colecção, parecendo a algunsespíritos modernos e abertos surgida de uma concepção elitista da vida intelectual, estava naturalmente condenada, em período de confusão, a desaparecer. Felizmente o Tratado de Confissom foi editado e teve mesmo a honra de ser discutido na Sorbonne, em Paris, perante um júri presidido por um sábio de prestígio mundial, Marcel Bataillon.
Uns meses depois o cimélio foi declarado de interesse e arrolado. O jovem que identificara o livro ficou, naturalmente, de lado. Jorge Peixoto que, desde a primeira hora, manifestara a sua concordância, veio visitar-me para me dizer que, não conhecendo bem a obra, se sentia mortificado por ser chamado a participar num tal acto. Tranquilizei-o: «pour être heureux, vivre cache». Era natural que fossem chamados ao Ministério os representantes da ciência bibliográfica oficial.
O artigo de 25 de Maio desencadeou, portanto, um debate e provocou uma certa efervescência em meios cultos. Na Universidade os reflexos foram diversos e graduados. Os professores mais preparados como Virgínia Rau e Lindley Cintra manifestaram logo um grande interesse pelo achado. A historiadora, que não simpatizava muito comigo, não sei se pelas minhas relações com a cultura estrangeira, se por eu não ser da sua escola nem seguir muito as suas directrizes de história económica, convidou-me a orientar um seminário no seu departamento. Lindley Cintra desejou colaborar, com Virgínia Rau, com o padre Mário Martins e comigo, num estudo a quatro acerca do cimélio (estudo que nunca foi possível levar a bom termo): Virgínia Rau estudaria aspectos do contexto histórico em que aparecera o livro; Lindley Cintra, grande filólogo, ocupar-se-ia dos lados linguísticos; Mário Martins da parte casuística e eu do tema bibliográfico. Sendo, dos quatro, o menos competente, mas porventura o mais diligente, foi-me forçoso estudar sozinho todos esses aspectos na edição publicada em 1973, como primeiro livro de uma colecção, os Portugaliae Monumenta Typographica, que a Imprensa Nacional se comprometeu a editar e os acontecimentos de 1974-1975, estabelecendo, com alguma confusão, um regime democrático em Portugal, prejudicaram. Não é que a Democracia seja incompatível, antes pelo contrário, com a cultura antiga e moderna. Mas nem sempre os homens que se dizem democráticos o são verdadeiramente. Uma tal colecção, parecendo a algunsespíritos modernos e abertos surgida de uma concepção elitista da vida intelectual, estava naturalmente condenada, em período de confusão, a desaparecer. Felizmente o Tratado de Confissom foi editado e teve mesmo a honra de ser discutido na Sorbonne, em Paris, perante um júri presidido por um sábio de prestígio mundial, Marcel Bataillon.
3. O artigo de 25 de Maio de 1965 teve eco nalguns países europeus: na Alemanha, na Bélgica, na Itália, na própria Inglaterra. Em Roma, L’Osservatore Romano consagrou-lhe um artigo. Os técnicos do Gesamtkatalog de Berlim pediram-me esclarecimentos e vieram a reconhecer como boas as minhas razões. Talvez valha a pena evocar, ainda, outros comentários.
Em fins de Maio ou inícios de Junho de 1965 os professores universitários que participaram num congresso luso-brasileiro de cultura, que tinha sido presidido pelo Prof. Marcello Caetano, encontraram-se com ele num jantar, que teve lugar num restaurante de Lisboa. Era, no espírito de todos, uma homenagem ao presidente que, fora de toda a política e só atento ao prestígio da ciência e da cultura, conduzira com dignidade a representação portuguesa. Lembro-me só de alguns nomes, entre os participantes: além de Marcello Caetano, Manuel Lopes de Almeida, Mário Tavares Chicó, Joaquim Veríssimo Serrão, Maria de Lourdes Belchior e outros. Fui informado de que, durante a refeição, quase só se havia falado do Tratado de Confissom. Com a concordância de Lopes de Almeida, Marcello Caetano exprimia-se mais ou menos assim: «Sem querer desfazer do valor do rapaz, estou convencido de que ele não tem razão. A data do colofão não é o termo na composição e impressão do livro, mas da redacção do manuscrito. O livro acabou-se na vila de Chaves, o que quer dizer, o manuscrito foi concluído na vila de Chaves, na data indicada». Informado telefonicamente desta objecção, preparei novo artigo, não só reduzindo à sua insignificância estes reparos, que não tinham fundamento, mas trazendo novos elementos que, entretanto, eu tinha alcançado de um confronto muito pormenorizado com incunábulos espanhóis de Zamora e Salamanca um pouco anteriores a 1489. O meu artigo começava por indicar que, de facto, se destinava a pessoas cultas (e Marcello Caetano era cultíssimo), mas não especialistas de bibliografia. Este segundo artigo foi publicado em fundo do Diário de Notícias a 20 de Junho de 1965. Marcello Caetano, em carta escrita no final desse mês, confessou-se vencido e convencido, havendo reconhecido a importância da descoberta para a incunabulística nacional.
Em Dezembro de 1974 (exactamente no dia 19), perante um juiz formado por Eugénio Asensio, Robert Ricard, Paul Teyssier, Raymond Cantel, André Saint-Lu e Marcel Bataillon, que presidia, defendi as minhas teses de doutoramento de Estado na sala Louis Liard da Sorbonne. Uma das teses era exactamente a edição diplomática do Tratado de Confissom e principalmente o meu estudo sobre os problemas do Livro português no século XV. Robert Ricard, não tendo compreendido inteiramente a ironia da minha interpretação de alguns aspectos mais pitorescos e picantes daquele texto, procurou com muita seriedade convencer-me da importância do sacramento da confissão na sociedade portuguesa do século XV, sem se aperceber de que estava a arrombar... uma porta aberta. Mas fê-lo com uma impecável delicadeza e com uma erudição excepcional. Marcel Bataillon discutiu comigo problemas erasmianos e erasmistas, domínio em que era o mais consumado investigador da época contemporânea. Mas Eugénio Asensio ocupou-se exclusivamente do Tratado de Confissom, lendo, um estudo que veio mais tarde a ser publicado, com o título de «Une découverte bibliographique», nos Arquivos do Centro Cultural Português de 1977.
Recentemente, em 1986, uma distinta bibliógrafa, Rosemarie Erika Horch, sustentou que o Sacramental, de que o único exemplar conhecido, numa edição quatrocentista, existe na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, foi publicado em 1488, também em Chaves, fundando-se, para tal afirmar, num testemunho indirecto. Na verdade não repugna aceitar que a data do Sacramental seja anterior à do Tratado de Confissom. Infelizmente, porém, o exemplar da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro é mutilado, faltando-lhe exactamente o fólio em que devia aparecer o colofão. Estou, contudo, convencido de que a tipografia de língua portuguesa deve ter aparecido em Portugal na década de 1480, embora não possa apoiar, com documentos indispensáveis, esta minha convicção. A qual, por isso mesmo, não pode ser apresentada em termos científicos, exactamente como a hipótese da distinta bibliógrafa Rosemarie Erika Horch.
Levar-me-ia muito longe esta breve dissertação se, agora, me dispusesse a pôr em evidência aspectos fundamentais do texto. De facto, trata-se de um fresco colorido da sociedade portuguesa do século XV. Nesse fresco encontramos desenhado o gráfico existencial do homem português antigo, nas suas grandezas e nas suas misérias. Talvez que a parte mais original do Tratado de Confissom seja aquela em que o autor anónimo, que Eugénio Asensio pensa ser um franciscano observante, faz a exaltação do homem, na esteira do De hominis dignitate de Giovanni Pico della Mirandola, e critica pesadamente a corrupção eclesiástica, citando S. Francisco e exaltando o espírito de pobreza. Seria, porém, exorbitar do tema, pois, nesta nota, propus-me apenas recordar algumas ocorrências do debate que se travou em 1965, quando tive a sorte de identificar ou descobrir, como autêntico, um novo incunábulo que, na expressão de Eugénio Asensio, «supposait une petite révolution dans I’histoire de Ia culture portugaise et une grande révolution dans celle de Ia typographie».
Em Dezembro de 1974 (exactamente no dia 19), perante um juiz formado por Eugénio Asensio, Robert Ricard, Paul Teyssier, Raymond Cantel, André Saint-Lu e Marcel Bataillon, que presidia, defendi as minhas teses de doutoramento de Estado na sala Louis Liard da Sorbonne. Uma das teses era exactamente a edição diplomática do Tratado de Confissom e principalmente o meu estudo sobre os problemas do Livro português no século XV. Robert Ricard, não tendo compreendido inteiramente a ironia da minha interpretação de alguns aspectos mais pitorescos e picantes daquele texto, procurou com muita seriedade convencer-me da importância do sacramento da confissão na sociedade portuguesa do século XV, sem se aperceber de que estava a arrombar... uma porta aberta. Mas fê-lo com uma impecável delicadeza e com uma erudição excepcional. Marcel Bataillon discutiu comigo problemas erasmianos e erasmistas, domínio em que era o mais consumado investigador da época contemporânea. Mas Eugénio Asensio ocupou-se exclusivamente do Tratado de Confissom, lendo, um estudo que veio mais tarde a ser publicado, com o título de «Une découverte bibliographique», nos Arquivos do Centro Cultural Português de 1977.
Recentemente, em 1986, uma distinta bibliógrafa, Rosemarie Erika Horch, sustentou que o Sacramental, de que o único exemplar conhecido, numa edição quatrocentista, existe na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, foi publicado em 1488, também em Chaves, fundando-se, para tal afirmar, num testemunho indirecto. Na verdade não repugna aceitar que a data do Sacramental seja anterior à do Tratado de Confissom. Infelizmente, porém, o exemplar da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro é mutilado, faltando-lhe exactamente o fólio em que devia aparecer o colofão. Estou, contudo, convencido de que a tipografia de língua portuguesa deve ter aparecido em Portugal na década de 1480, embora não possa apoiar, com documentos indispensáveis, esta minha convicção. A qual, por isso mesmo, não pode ser apresentada em termos científicos, exactamente como a hipótese da distinta bibliógrafa Rosemarie Erika Horch.
Levar-me-ia muito longe esta breve dissertação se, agora, me dispusesse a pôr em evidência aspectos fundamentais do texto. De facto, trata-se de um fresco colorido da sociedade portuguesa do século XV. Nesse fresco encontramos desenhado o gráfico existencial do homem português antigo, nas suas grandezas e nas suas misérias. Talvez que a parte mais original do Tratado de Confissom seja aquela em que o autor anónimo, que Eugénio Asensio pensa ser um franciscano observante, faz a exaltação do homem, na esteira do De hominis dignitate de Giovanni Pico della Mirandola, e critica pesadamente a corrupção eclesiástica, citando S. Francisco e exaltando o espírito de pobreza. Seria, porém, exorbitar do tema, pois, nesta nota, propus-me apenas recordar algumas ocorrências do debate que se travou em 1965, quando tive a sorte de identificar ou descobrir, como autêntico, um novo incunábulo que, na expressão de Eugénio Asensio, «supposait une petite révolution dans I’histoire de Ia culture portugaise et une grande révolution dans celle de Ia typographie».
Lisboa, 13 de Dezembro de 1988
* Professor da Universidade de Lisboa. Sócio Efectivo da Academia das Ciências de Lisboa.
Referência
Pina Martins, J. V. de — De como identifiquei o «Tratado de Confissom». Revista ICALP, vol. 15, Março de 1989, 119-130.