quinta-feira, novembro 26, 2009

Uma mulher na vida de Antero.Apresentação da dr.ª Ana Maria de Almeida Martins - Henrique Barreto Nunes

É pouco vulgar o apresentador de um conferencista não possuir quase nenhuns dados biográficos acerca da pessoa sobre quem vai falar.
É este, porém, o meu caso hoje. Da Drª Ana Maria Almeida Martins só poderei falar a partir da sua obra sobre Antero.
Caso raro este, de uma singular discrição num país que cada vez mais se cultiva o protagonismo, a evidência a qualquer custo.
Ana Maria Almeida Martins é, hoje em dia, a figura principal da bibliografia activa e passiva Anteriana.
Assim poderá perguntar-se como entrou Antero na vida desta mulher, que o trata com verdadeira paixão.
Uma entrevista publicada no “Público” de 7 Jun. 91 revela-nos a origem desse interesse: “O meu primeiro encontro com Antero vem da fascinação que senti pela personagem nos seus tempos de Coimbra.
Comecei por achar desusado que um jovem de 20 anos chegue a Coimbra e abane aquilo tudo...
...a coragem de desafiar o que não presta
...o tipo que dá o passo em frente sem pedir licença a ninguém
...que nunca dobra a espinha
...que ousa desafiar Castilho
Pode imaginar-se a força que era precisa a um jovem de pouco mais de 20 anos para fazer as coisas que fez na Coimbra do séc. XIX.
Achei isso fascinante.
Só muito mais tarde é que veio o encontro com a poesia e de seguida com o resto da obra.
Nada fazia prever que eu ia publicar coisas. Escrever [sobre Antero] veio por acréscimo”.
O acréscimo produziu a bibliografia fundamental que passarei a citar:
  • CARTAS DE VILA DO CONDE
    Porto: Lello, 1981

Uma colectânea que inclui muitas das cartas que Antero escreveu durante os quase 10 anos que viveu em Vila do Conde.
Constituem uma parte indispensável da sua obra, um testemunho humano, intelectual e moral de enorme importância para o seu conhecimento.
Em muitos pontos esta correspondência representa como que um diário do escritor, pois o Homem está inteiro nelas, confiando-nos o seu coração, as suas preocupações filosóficas e pessoais, devido à diversidade dos destinatários e às intenções e objectivos que as cartas
perseguiam.

  • CARTAS INÉDITAS DE ANTERO PARA OLIVEIRA MARTINS: UMA PROCURA PARTILHADA
    “Prelo”, Lisboa, 7, Abr.-Jun. 1985 (em colaboração com Guilherme Oliveira Martins)

Dezasseis cartas que testemunham uma intensa amizade intelectual que se transformou numa autêntica comunhão de espíritos.

  • CARTAS INÉDITAS A ALBERTO SAMPAIO
    Lisboa: O Jornal, 1985

Possuem características únicas na epistolografia anteriana. São o testemunho de uma longa (de 30 anos) e profunda amizade que as 97 cartas reunidas perpetuam, constituindo um documento imprescindível para o estudo de alguns dos protagonistas da Geração de 70.

Mas desta amizade certamente nos falará hoje com grandedetalhe a Drª Ana Maria Almeida Martins.

  • O ESSENCIAL SOBRE ANTERO DE QUENTAL
    Lisboa: Imprensa Nacional — C.M., 1985

Uma breve e concisa introdução à biografia de AQ, que cumpre inteiramente os objectivos da colecção em que se integra e serve para criar a vontade de ir mais longe, de partir à descoberta da obra de “uma das mais fascinantes, se não a mais fascinante figura da nossa literatura”.

  • ANTERO DE QUENTAL: FOTOBIOGRAFIA
    Lisboa: IN-CM/ Sec. Reg. Educação e Cultura Açores, 1986

Não se pode falar de Antero sem paixão, mas uma paixão lúcida e consciente tem obrigatoriamente que resultar do seu conhecimento.
E Antero era, até há pouco, praticamente desconhecido apesar de muito referenciado ou mesmo utilizado como bandeira.
Neste livro, feito essencialmente para ser visto, a Autora procurou reproduzir a verdadeira efígie de Antero, que este desenhou e subscreveu, sobretudo na célebre carta autobiográfica dirigida a
Wilhelm Storck em 1887, para servir de prefácio à tradução alemã dos sonetos.
Uma carta a Cândido de Figueiredo (1881) e excertos de outras dirigidas a vários amigos constituem as fontes originais que permitam traçar com grande segurança e fidelidade o itinerário anteriano.
Mas este livro é, sobretudo, imagem, constituída por uma riquíssima iconografia que nos permite acompanhar, a par e passo, o percurso de Antero, pontuado com textos judiciosamente seleccionados que explicam ou completam as ilustrações.
E assim começamos a percorrer demoradamente, preguiçosamente, mas com um prazer imenso, as imagens deste livro, partindo das origens ¾ físicas e familiares ¾ açorianas.

E como num filme envolvente, vemos perpassar as pessoas e as casas, as palavras e os livros, as revistas e os jornais, os sonhos, os projectos, os movimentos, as realizações. E os amigos. E os lugares.
Castilho e os manos Sampaios, Eça e Germano Meireles, Michelet e Oliveira Martins, a Geração de 70 aqui nos surgem em carne e osso.
De S. Miguel a Coimbra, de Paris a Lisboa, de Vila do Conde (e Boamense) a Ponta Delgada (e ao campo de S. Francisco, e ao tiro necessário) Ana Maria Almeida Martins leva-nos na companhia de Antero e do seu inconformismo, da sua lucidez, da sua revolta e do seu génio, da sua angústia.
De uma documentação iconográfica extremamente rica, fruto de um conhecimento exaustivo sobre a época e sobretudo de uma investigação paciente, aturada e rigorosa, resulta uma obra fascinante e reveladora que nos permite reconstruir fielmente o retrato do homem e da sua circunstância.

  • CARTAS
    Lisboa: Comunicação ¾ Univ. Açores, 1989-1990 (Obra completa de Antero de Quental; 6/7)


Eis a correspondência quase completa de um dos nossos “raros heróis culturais” (E. Lourenço), porventura a personalidade mais fascinante que alguma vez surgiu no panorama literário e cultural português.
As cartas, para além de tudo o que nos trazem para o conhecimento da vida e da obra de AQ, vêm ampliar o nosso conhecimento sobre a prosa de um autor que segundo A. Sérgio seria “o mais sóbrio, o mais puro, o mais clássico dos prosadores da língua portuguesa”.
Foi Joel Serrão que em 1982 incitou Ana Maria Almeida Martins a iniciar a recolha de todas as cartas de AQ já conhecidas em livro ou dispersas por jornais e revistas, com intenção de posteriormente as publicar.
O ponto de partida desta recolha teria de ser a biografia de Bruno Carreiro, cuja importância é desnecessário encarecer.

Uma edição das cartas, subordinadas às exigências do rigor, impunha como tarefa prioritária a localização dos originais, tais as incongruências e deficiências detectadas no confronto de diversas
edições em que vêm sendo publicadas.
Tarefa morosa e difícil porque não se conseguiram localizar algumas cartas, mas de qualquer modo a grande maioria é pela primeira vez apresentada na íntegra.
Algumas inéditas foram incluídas neste volume mas outras ainda poderão existir na posse de particulares.
Foi um longo peregrinar que levou mesmo a autora até Veneza, para analisar o espólio de Joaquim de Araújo, e a uma infinidade de contactos com pessoas e instituições onde as cartas publicadas se podem encontrar.
Das 704 cartas recolhidas, 516 foram directamente cotejadas com os originais, sendo 203 inéditas ou pela 1ª vez publicadas em volume.
As cartas são publicadas por ordem cronológica havendo naturalmente diversos problemas de datação que a autora procurou resolver a partir do seu conhecimento sobre Antero.
O critério cronológico permite acompanhar o percurso biográfico de Antero.
Os critérios de transcrição das cartas são rigorosamente apresentadas na introdução.
O volume é substancialmente enriquecido com uma bibliografia sobre as publicações onde anteriormente apareceu a correspondência anteriana.
Preciosos índices (destinatários, onomástico, geográfico e toponímico, temático e de ilustrações e ainda um analítico das cartas) completam este trabalho feito com um rigor, uma seriedade, uma
qualidade inexcedíveis.
Magníficos livros, estes.
Não se poderá voltar a estudar Antero sem recorrer à fotobiografia e sobretudo às cartas que ajudam a esclarecer dúvidas e interrogações que a sua vida tantas vezes levanta.
As comparações são sempre pouco simpáticas mas, para mim, a investigação de Ana Maria Almeida Martins sobre Antero só pode encontrar paralelo naquela que Alexandre Cabral dedicou a Camilo, o outro genial suicida da nossa literatura ¾ e para Antero ou Camilo, o suicídio é um desenlace inevitável feito de lucidez e coragem.
Não duvido que a cultura portuguesa ficará eternamente devedora à Drª Ana Maria Almeida Martins, que a SMS em boa hora convidou, por estes trabalhos, que tanto contribuem para melhor conhecer uma das personalidades mais perturbantes da sua história.

Revista de Guimarães, n.º 102, 1992, pp. 321-325

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