segunda-feira, novembro 23, 2009

Introducção à exposição Pedro Nunes, 1502-1578 - Henrique Leitão

A posição de Pedro Nunes na história da ciência em Portugal não necessita de grandes esclarecimentos. Ele foi, sem dúvida, o mais importante matemático da história portuguesa. Esta apreciação não é feita tendo por base um qualquer critério subjectivo, ou simplesmente a partir de uma opinião sobre a "genialidade" ou "novidade" das suas obras. É certo que a inspecção dos trabalhos de um homem de ciência, quando cotejada com os conhecimentos que estavam disponíveis na época em que escreveu, permite pôr em evidência a originalidade das suas contribuições e a capacidade do seu talento. Mas a ciência tem um critério implacável de aferição da importância e do valor das contribuições de qualquer autor, que não se limita ao exame interno da sua produção. É apenas na medida em que as ideias e inovações de um autor são integradas na obra de outros que se pode falar em importância científica. No século XVI, como hoje, o principal critério de avaliação da qualidade científica era o da opinião dos pares, o que reflecte a natureza essencialmente colectiva da actividade científica. Assim, no julgamento do valor de um homem de ciência, pouco importa a opinião popular, ou a de não-especialistas. Como escreveu Nicolau Copérnico, um dos mais célebres contemporâneos de Pedro Nunes: Mathemata mathematicis scribuntur [as Matemáticas escrevem-se para os matemáticos]. O que interessa registar é a apreciação dos seus pares, isto é, a dos outros grandes cientistas do seu tempo.
No caso de Pedro Nunes, essa apreciação foi quase unânime. Em finais do século XVI, o matemático jesuíta Cristóvão Clavius, uma das personalidades mais influentes no panorama matemático da altura, referia-se a Nunes apelidando-o de "célebre matemático", "engenho penetrantíssimo", "inferior a nenhum outro em matemática no nosso tempo". Confirmando estas palavras, algumas das importantes contribuições científicas de Clavius, por exemplo relativamente ao problema dos crepúsculos ou ao nónio, têm a sua origem e apoiam-se essencialmente em trabalhos e especulações de Pedro Nunes. O também célebre matemático e cosmógrafo inglês John Dee, em 1558 nomeou-o seu executor testamentário apelidando-o de "esse homem eruditissimo [...] que é para nós o único depósito e coluna das artes matemáticas", palavras que ganham ainda mais significado quando se recorda que Dee privava com alguns dos mais consagrados homens de ciência da altura e que é quase certo nunca ter conhecido em pessoa o cosmógrafo português. Edward Wright, também ele um famoso matemático de Inglaterra, fez começar o seu influente Certaine errors of navigation (1599), com a cândida confissão de que importantes partes dessa obra eram traduzidas, "palavra por palavra", dos trabalhos de Pedro Nunes. Por iniciativa dos padres Giovanni Battista Riccioli e Francesco Grimaldi, fundadores da selenografia - o estudo científico da Lua - uma das crateras do nosso satélite passou a chamar-se "Petrus Nonius". Em Espanha, o cosmógrafo Simón de Tobar designava Nunes o "mayor mathematico de quantos a avido en nuestros tiempos" e, no nosso país, Luís Serrão Pimentel, figura central da ciência portuguesa de seiscentos, não poupava encómios cada vez que referia o nome de Pedro Nunes.
Em praticamente todos os grandes matemáticos, astrónomos e cosmógrafos da segunda metade do século XVI e do século XVII é possível encontrar, se não referências directas ao trabalho de Pedro Nunes, pelo menos alguns traços da sua influência. Mesmo os que lhe apontaram erros, como por exemplo Giovanni Battista Benedetti, no seu Speculationum mathematicarum et physicarum (1586), ou os que lhe criticaram o estilo, como Claude De Chales, no Mundus seu cursus mathematicus (1690), confirmam com essa atenção que lhe dirigiram - muitas vezes largos anos após a morte do matemático português - a vitalidade dos seus escritos.A par do reconhecimento pelos outros cientistas e da atenção prestada pelos estudiosos de épocas seguintes, há também um desejável conhecimento pelo grande público. Dar a conhecer junto do grande público um autor como Pedro Nunes tem os seus problemas. No século XVI era muito reduzido o número dos que podiam entender os trabalhos do matemático português; no século XXI, esse número é diminuto. Se exceptuarmos algumas palavras de circunstância que Pedro Nunes fez incluir nas suas obras, e o facto de ter dado ao prelo algumas traduções portuguesas, a verdade é que Nunes, como qualquer outro grande criador de ciência, dirigiu-se sempre à audiência selecta, mas muito reduzida, dos matemáticos mais competentes da sua era. A divulgação é uma tarefa nobre, mas não é quase nunca uma preocupação dos grandes criadores científicos e não foi certamente uma preocupação de Pedro Nunes. Acresce ainda que o melhor da produção noniana foi impresso em latim, a língua de cultura científica até finais do século XVIII, o que torna o conhecimento desses trabalhos pelo público dos nossos dias ainda mais difícil.
A celebração de um matemático de primeiro nível, como Pedro Nunes, é, portanto, algo problemática. Deixando de lado o reduzidíssimo número de especialistas que aproveita estas comemorações para aprofundar o conhecimento da história científica do século XVI, ou de algum aspecto menos conhecido da biografia do nosso maior matemático, o grande público sentirá naturais dificuldades em aproximar-se destas comemorações. As obras de Pedro Nunes, quando são interessantes, são técnicas e complexas, e é muito difícil - em alguns casos, impossível de todo - explicar simplificadamente o melhor das reflexões nonianas. As instituições e os poderes de cada momento, sejam eles quais forem, aproveitam geralmente a ocasião destas celebrações para sublinhar algum aspecto caro à mentalidade do tempo e que, de uma maneira ou outra, procuram recolher da personalidade histórica que se comemora. Assim, se em épocas passadas Pedro Nunes foi celebrado sobretudo como uma "glória da nação portuguesa", nos nossos dias ele é sobretudo anunciado como o "humanista" e o "arauto da modernidade". Nenhuma destas apreciações é incorrecta, mas tem de reconhecer-se que qualquer uma delas nos diz muito mais sobre o modo como cada geração se procura descrever a si própria do que sobre o perfil da figura histórica em apreço.
Permanece, portanto, o facto de a justiça reclamar uma homenagem a um português que se distinguiu, e a curiosidade do público estar aí, atenta, e à espera de alguma resposta. Que fazer? Não se trata de explicar em pormenor as várias contribuições científicas de Pedro Nunes. Um tal objectivo, mesmo admitindo que fosse realizável, exigiria uma iniciativa de tipo radicalmente distinto e, convenhamos, interessaria a poucos. Uma solução - discutível, e longe de ser perfeita - é a de procurar mostrar Pedro Nunes inserido no fluxo do fascinante processo histórico que foi a constituição da ciência dos nossos dias. Encontrá-lo, a ele e à sua obra, entre os outros nomes e as contribuições dos homens que marcaram de forma determinante a evolução histórica da ciência. Isto é, de alguma maneira, modelar o próprio processo pelo qual o desenvolvimento científico se constrói: uma grande conversa no tempo entre grandes figuras.
O que parece ser realizável, e ao mesmo tempo revelador do perfil intelectual de Pedro Nunes, é dar a conhecer um pouco o seu mundo intelectual. Mostrar que as suas fontes são o melhor que o mundo científico do século XVI tinha para oferecer e que o seu conhecimento dos autores mais importantes parece ser quase absoluto. Mostrar que, mesmo várias décadas após o seu falecimento, o seu nome continuou intimamente associado a muitos problemas científicos. Ora o livro, este objecto tão familiar e tão misterioso, testemunha silenciosa mas eloquente de uma vida no passado, presta-se admiravelmente bem para este fim.
O que se pretende é deixar patente qual era o mundo intelectual de Pedro Nunes.
Mostrar que os seus interlocutores, os seus seguidores e os seus críticos não foram tanto os "homens de mar" que, ontem como hoje, mal podiam imaginar aquilo que o ocupava intelectualmente, mas sim os maiores que o antecederam e os maiores que o sucederam. A incompreensão que alguns dos seus contemporâneos portugueses manifestaram pelas suas obras é, em grande medida, estrutural à criação científica e matemática de alto nível. Poucos podiam entendê-lo, como poucos podem hoje em dia entender o melhor da produção matemática dos nossos dias. Para o bem e para o mal, qualquer grande matemático é membro de uma comunidade muito reduzida e selecta; está como que prisioneiro num mundo mental acessível a pouquíssimos.
Esta Exposição está ordenada em três núcleos que, centrados nas Obras de Pedro Nunes, se projecta a partir daí, para o passado, com as Fontes de Pedro Nunes, e para o fututro, com a Difusão da obra noniana. Nesta articulação, a presente iniciativa distingue-se de outras mostras bibliográficas sobre Pedro Nunes realizadas em anos transactos e em outras instituições que não a Biblioteca Nacional. Todas as obras que aqui se apresentam têm uma relação directa com Pedro Nunes e foi apenas nessa medida que se escolheram para exibir.
Seleccionar as obras a expor foi a parte mais importante e a mais difícil deste trabalho, pois facilmente se multiplicariam as obras que constituíram as suas fontes e as que testemunham a difusão das suas ideias. Considerando que a multiplicação de espécies bibliográficas, para além de levantar problemas de ordem logística, em pouco auxiliaria os propósitos que nortearam esta exposição, optou-se por seleccionar um total de cerca de 100 obras. A selecção que foi feita não tem, nem poderia ter, qualquer pretensão de ser exaustiva, mas procurou, tanto quanto possível, ser representativa. Quer quanto às fontes usadas por Pedro Nunes, quer quanto às obras que testemunham a difusão europeia das suas ideias, procurou-se escolher trabalhos que correctamente identifiquem as principais linhas de força do pensamento científico de Pedro Nunes. Embora o estudo teórico da náutica tenha sido um dos assuntos que mais celebrizou o matemático português, não foi de maneira nenhuma o único tema que o interessou. Por isso, nesta mostra de livros, houve o cuidado de apresentar materiais de essas outras temáticas, que passam pela álgebra, a trigonometria, a geometria, a óptica, a mecânica teórica, a astronomia matemática, etc.
Para o bibliófilo e o interessado em história do livro cremos que o presente Catálogo tem também alguns motivos de interesse. O livro científico coloca problemas de estudo muito particulares. A sua produção eficiente levou a importantes melhorias na arte tipográfica e, dado que os mercados a que se destinava eram, em geral, de reduzida dimensão, obrigou ao aparecimento de formas pouco comuns de mecenato e financiamento. Todos estes assuntos têm motivado, nos últimos anos, uma crescente aproximação de interesses entre historiadores de ciência e especialistas de história do livro.
Para além da informação bibliográfica relevante para cada espécie, incluíram-se umas breves notas explicativas. Essas anotações não se dirigem, como é evidente, ao especialista. O seu propósito é proporcionar ao público geral um conjunto mínimo de dados - científicos, históricos, biográficos - que possibilitem uma melhor compreensão do contexto e relevância de cada obra apresentada. Por outro lado, parte-se do princípio de que os visitantes têm uma familiaridade mínima com os aspectos fundamentais da biografia e produção científica de Pedro Nunes. Não se trata de uma exposição sobre a figura histórica de Pedro Nunes mas, de forma mais restrita, de uma exposição dos livros onde se espelha o mundo mental do mais importante matemático da história portuguesa.


HENRIQUE LEITÃO
Comissário Científico, Faculdade de Ciências
da Universidade de Lisboa

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