No dia 9 de Junho de 1977 perfez-se um século sobre o nascimento de Carlos França, e a tarefa de comemorar esse centenário com um discurso coube, por convite da edilidade de Colares, terra adoptiva de França, ao Prof. Doutor João Cândido da Silva Oliveira (1), da Faculdade de Medicina de Lisboa, de cuja conferência comemorativa transcrevemos alguns excertos.
O panorama da ciência médica portuguesa sofrera no último quartel do século XIX uma prodigiosa mutação com o advento de Câmara Pestana. É do conhecimento geral que o longo período que a precedeu se caracterizou entre nós pela ausência quase total de pesquisa científica original, confinando- -se os clínicos, embora competentes, à simples informação dos factos e doutrinas criados em centros além fronteiras. Tal situação colocava a medicina nacional num plano subsidiário em confronto com os obreiros fazedores de ciência que labutavam nos laboratórios e clínicas para lá dos Pirinéus. No vasto campo da Biologia, normal e patológica, Pasteur em França, Koch e Erlich na Alemanha e Lister nas Ilhas Britânicas haviam lançado os fundamentos de novas ciências experimentais, criando a Microbiologia e a lmunologia com larga repercussão na clínica e na terapêutica. Uma enorme vaga de jovens investigadores logo acudiu ao chamamento dos grandes mestres e, no curto período das duas décadas finais de oitocentos, foram descobrindo os agentes das principais doenças infectocontagiosas e desvendando os mistérios da sua acção patogénica.
Em Portugal, deve-se a Câmara Pestana, jovem médico madeirense, inteligente e diligente, a obra ímpar de criar o primeiro laboratório-escola de medicina experimental, onde nasceu para nós a Bacteriologia e ciências afins e onde floresceu um escol de investigadores cujos nomes, espalhados aos quatro ventos por revistas, anais e livros científicos, deram à biologia portuguesa um lustro que nunca tivera. Num velho pardieiro do Hospital de S.José, improvisado em É àquele grupo de noveis cientistas guiados pelo saber de Câmara Pestana que veio juntar-se por volta de 1896, um jovem estudante de medicina, pleno de entusiasmo, idealista e liberal, de seu nome Carlos França, nascido em 9 de Junho de 1877 em Torres Vedras e filho do médico militar Dr. Inácio França. E aqui começa a história dum dos nossos mais notáveis cientistas, cuja obra se estende por quase duas centenas de publicações estampadas nos prelos do mundo culto europeu. Desta longa caminhada em que França se empenhou, resultaram sucessivamente escritos de neuro-histologia, de bacteriologia, de rabiologia, de epidemiologia e clínica, de zoologia, enfim de parasitologia animal e vegetal, ciência em que fez obra verdadeiramente notável. instituto de investigação, se juntou em torno de Câmara Pestana um punhado de moços entusiastas, mal saídos da Escola Médica, uns médicos, outros ainda estudantes, que se chamaram Anibal Bettencourt, Morais Sarmento, Gomes de Rezende, Bello de Morais, Amor de Melo, Ayres Kopke, Francisco Gentil, Mark Athias, o veterinário Reis Martins e muitos outros que ajudaram a fundar e engrandecer com as suas pesquisas o que então se passou a designar, na letra do decreto de 1892, Instituto Bacteriológico de Lisboa. O que foi a vida e obra de apostolado de Câmara Pestana, morto aos 36 anos no cumprimento da sua missão quando estudava a epidemia de peste bubónica que em 1899 assolou a cidade do Porto, está contado e recontado.(...)
O rol bibliográfico deste multímodo pesquisador foi elaborado e comentado pelo seu mais ilustre biógrafo, o Professor Ferreira de Mira. (...) A primeira publicação intitulada .Contribuição para o estudo das alterações cadavéricas das células radiculares da medula espinhal. saiu nos .Arquivos de Medicina., fundados por Câmara Pestana, quando França era ainda estudante e já interno dos hospitais de Lisboa. É um trabalho de Histologia do sistema nervoso elaborado no que ele designou por .Laboratório de Histologia do Real Instituto Bacteriológico de Lisboa.
E não é para admirar que, duma oficina de bacteriologia, surgisse uma obra de histologia já que Câmara Pestana, o mestre, era a um tempo versado em microbiologia, em anatomia patológica e em clima, dentro do conceito de que a ciência médica forma um todo onde importa estudar tanto as causas da doença, como os seus efeitos e sua possível cura. Daí que a dissertação inaugural de Carlos França que culminou a sua vida estudantil em 1898, fôsse também um trabalho de histologia sôbre o método de Nissl no estudo da célula nervosa e bem assim a publicação do ano seguinte sobre o papel dos leucócitos na destruição da célula nervosa, já de parceria com o notável histologista Mark Athias que então havia feito a sua aprendizagem em Paris com Mathias Duval e viera juntar-se à turma de Câmara Pestana. Nesse ano memorável de 1899 as atenções de todos estavam centradas na peste do Porto, onde acudiu Pestana com os seus colaboradores Gomes de Rezende e Carlos França.
O trabalho árduo a que todos se votaram dia e noite no miserando Hospital das Guelas de Pau, onde se acumulavam os pestosos, teve por epílogo a contaminação de Pestana e de França com o terrível morbo que levou à morte o primeiro e poupou por um triz o segundo. Desse trabalho clínico, epidemiológico e laboratorial deram conta Carlos França e Rezende no seu relatório de 1900. O material então colhido serviu-lhe de substrato para o estudo das alterações dos centros nervosos na peste e mais tarde para a descriminação das lesões cutâneas na mesma doença publicadas em revistas francesas e alemãs.
A aprendizagem da bacteriologia ía-lhe custando a vida mas não lhe afrouxou o ânimo, de tal modo que a breve trecho se lançou nas investigações sobre a raiva. Por essa época a raiva, doença invariavelmente mortal, grassava com intensidade em todo o País. O cão danado surgia em cada esquina ao indígena incauto e, para tratar os mordidos, tinha Câmara Pestana apetrechado o seu Instituto, que por morte de Pestana era agora dirigido por Aníbal Bettencourt. Vale a pena lembrar que a fundação do Instituto Bacteriológico muito deveu à Rainha D. Amélia, cujo retrato pintado por Salgado ainda orna muito justamente as paredes da biblioteca desta instituição. À beira da morte, Pestana escrevera à Rainha no sentido de interceder para que a direcção do Instituto fôsse entregue ao seu colaborador mais antigo, o Bettencourt e que Carlos França entrasse no quadro como médico auxiliar.
O testamento do sábio bacteriologista foi escrupulosamente cumprido. Nomeado chefe de Serviço da raiva, Carlos França dedicou-se logo ao estudo das alterações de sistema nervoso nos indivíduos mortos pela doença e à pesquisa de métodos laboratoriais que facilitassem o diagnóstico da doença em vida. Por outro lado, conhecedor de que a doença provinha dos animais e constituía a zoonose mais terrível, empreendeu um conjunto de estudos memoráveis que intitulou .Pesquisas sobre a raiva na série animal., investigando os murídeos, a raposa, o ouriço, o texugo, a doninha, o porco espinho e o lobo, estabelecendo dados que mais tarde viriam a ser confirmados por pesquisadores doutros países.
Só muito depois dos seus estudos, o ratinho ou murganho se tornaria, como ele previra, o animal sensível de escolha para a investigação do vírus rábico. Os temas de estudo surgiam-lhe agora debaixo dos pés. Na nosografia nacional reaparecia em 1900 a meningite cerebroespinhal epidémica que por um quarto de século andara arredada do País. A onda epidémica, que partira do nordeste transmontano e se espalhara a todas as províncias, atingiu o seu auge no começo de 1902. Os numerosos casos geralmente ocorridos em crianças da área de Lisboa eram acolhidos no serviço especial de isolamento instalado no Hospital de Arroios cuja direcção foi cometida a Carlos França. Então por sua iniciativa neste hospital ou em colaboração com Aníbal Bettencourt no Instituto Bacteriológico, empreendeu um longo estudo clínico, epidémiológico, anatomo-patológico e bacteriológico, de que prestou contas num relatório ao Conselheiro-Enfermeiro-Mor dos Hospitais e que publicou, em pormenor, numa memória subscrita por Bettencourt e França a qual constitui o primeiro artigo do primeiro número da publicação ainda hoje denominada .Arquivos do Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, que foi sucessivamente dirigida por Anibal Bettencourt, Nicolau Bettencourt e por mim próprio. Nesta e noutras publicações sobre a meningite epidémica ressaltam verdadeiras inovações, como o uso de substâcias antissépticas injectadas no canal raquidiano para tratamento da doença, método que logo foi adoptado pela medicina de além fronteiras.
Ano após ano foi-se desentranhando em pesquisas diversas até que, em 1910, a epidemia de cólera da ilha da Madeira veio mudar o curso à sua actividade e influir radicalmente na sua vida científica. Já então se havia proclamado a República no País e o ministro do Interior, ao tempo o Dr. António José de Almeida, alarmado com a difusão da epidemia de causa ainda não confirmada, sugeriu ao Prof. Ricardo Jorge, Director Geral da Saúde, que se enviasse Carlos França a fim de apurar o diagnóstico e assumir a direcção da luta antiepidémica. Caldeado pela experiência dos andaços pestosos do Porto e meningíticos de Lisboa, era França o nome indicado para semelhante tarefa. De principio recusou alegando o seu estado de saúde. Na verdade, desde há tempos que o vinha aflingindo o mal que o havia de levar à morte, mas o sentido do dever foi mais forte e, a 30 de Novembro desse ano, partiu para a Madeira no vapor S. Miguel, já investido no cargo de Director dos Serviços Sanitários Insulares. Imediatamente após a sua chegada procedeu aos estudos laboratoriais que firmariam o diagnóstico de cólera pelo isolamento e culturas do vibrião seu agente. Ao mesmo tempo iniciou um conjunto de medidas de combate à doença, estabelecendo uma organização sanitária modelar que a breve trecho conduzia à extinção da epidemia. Não foi porém sem obstáculos que o árduo trabalho se processou. Deparou-se-lhe uma população na sua maioria ignorante e fanática, vivendo na miséria e na ausência dos mais rudimentares preceitos de higiene motivada pelo alcoolismo e a fome, negando-se a aceitar que a doença reinante era a cólera. O encerramento do porto do Funchal mais agravou a animadversão do povo. Urgia trabalhar depressa e com decisão. Logo que aquela pobre gente viu a epidemia a declinar, mercê das medidas adoptadas, afrouxou a sua desconfiança e como escreveu com modéstia o próprio Carlos França, a Madeira, com inegualável bizarria, recompensava generosamente aquele sobre cujos ombros pesava indevidamente o honroso encargo de Chefe dos Serviços Sanitários do Distrito.
Entretanto iniciara França, no Instituto Bacteriológico e na Escola Politécnica onde desempenhou o cargo de naturalista do Museu Bocage, a sua obra de parasitologista que havia de imortalizá-lo. Sendo a Parasitologia, já nessa época, uma ciência reconhecida no mundo culto, mal andaria a Faculdade de Medicina de Lisboa se lhe não desse foros de disciplina independente e não procurasse chamar ao seu âmbito Carlos França como professor indiscutível. E assim Carlos França foi por unanimidade e com dispensa de provas, nomeado professor livre da Faculdade. Quando das comemorações do Centenário da Régia Escola de Cirúrgia de Lisboa em 1925, o novo docente proferiu no anfiteatro de Fisiologia do Campo de Santana quatro memoráveis lições de Parasitologia. No início do seu discurso comemorativo disse Cândido de Oliveira: "E porque os escritos e comentos sobre Carlos França escasseiam para vergonha de todos nós, é mister que alguém desencante dos alfarrábios esta maravilhosa história de proveito e exemplo e a traga ao convívio do povo generoso da sua terra. (Colares, 1977)".
É porém ao convívio de todos nós que, neste início de século, deve ser trazida a obra do epidemiologista, parasitologista e higienista que em 1925, referindo-se à omnipotência que a higiene hoje possui, diria .que os seus progressos foram tais que ao Século XX caberia rigorosamente a designação do século da higiene, tais as maravilhas que nele se têm realizado nesse campo, que é, afinal, o de uma das mais belas conquistas para a Humanidade..
Artigo de Fanny Andrée Font Xavier da Cunha* na revista Medicina na Beira Interior, disponível numa sebenta da faculdade de medicina de Coimbra.
* Técnica Superior, Museu Nacional da Ciência e da Técnica.
Notas
1 Professor da Faculdade de Medicina de Lisboa (1906-? ), distinguiu-se no campo da Bacteriologia, da Serologia, da Parasitologia, da Hematologia, da Quimica Biológica, do Metabolismo Basal, etc. Foi o primeiro que, em Portugal, iniciou estudos sobre Bruceloses.
O panorama da ciência médica portuguesa sofrera no último quartel do século XIX uma prodigiosa mutação com o advento de Câmara Pestana. É do conhecimento geral que o longo período que a precedeu se caracterizou entre nós pela ausência quase total de pesquisa científica original, confinando- -se os clínicos, embora competentes, à simples informação dos factos e doutrinas criados em centros além fronteiras. Tal situação colocava a medicina nacional num plano subsidiário em confronto com os obreiros fazedores de ciência que labutavam nos laboratórios e clínicas para lá dos Pirinéus. No vasto campo da Biologia, normal e patológica, Pasteur em França, Koch e Erlich na Alemanha e Lister nas Ilhas Britânicas haviam lançado os fundamentos de novas ciências experimentais, criando a Microbiologia e a lmunologia com larga repercussão na clínica e na terapêutica. Uma enorme vaga de jovens investigadores logo acudiu ao chamamento dos grandes mestres e, no curto período das duas décadas finais de oitocentos, foram descobrindo os agentes das principais doenças infectocontagiosas e desvendando os mistérios da sua acção patogénica.
Em Portugal, deve-se a Câmara Pestana, jovem médico madeirense, inteligente e diligente, a obra ímpar de criar o primeiro laboratório-escola de medicina experimental, onde nasceu para nós a Bacteriologia e ciências afins e onde floresceu um escol de investigadores cujos nomes, espalhados aos quatro ventos por revistas, anais e livros científicos, deram à biologia portuguesa um lustro que nunca tivera. Num velho pardieiro do Hospital de S.José, improvisado em É àquele grupo de noveis cientistas guiados pelo saber de Câmara Pestana que veio juntar-se por volta de 1896, um jovem estudante de medicina, pleno de entusiasmo, idealista e liberal, de seu nome Carlos França, nascido em 9 de Junho de 1877 em Torres Vedras e filho do médico militar Dr. Inácio França. E aqui começa a história dum dos nossos mais notáveis cientistas, cuja obra se estende por quase duas centenas de publicações estampadas nos prelos do mundo culto europeu. Desta longa caminhada em que França se empenhou, resultaram sucessivamente escritos de neuro-histologia, de bacteriologia, de rabiologia, de epidemiologia e clínica, de zoologia, enfim de parasitologia animal e vegetal, ciência em que fez obra verdadeiramente notável. instituto de investigação, se juntou em torno de Câmara Pestana um punhado de moços entusiastas, mal saídos da Escola Médica, uns médicos, outros ainda estudantes, que se chamaram Anibal Bettencourt, Morais Sarmento, Gomes de Rezende, Bello de Morais, Amor de Melo, Ayres Kopke, Francisco Gentil, Mark Athias, o veterinário Reis Martins e muitos outros que ajudaram a fundar e engrandecer com as suas pesquisas o que então se passou a designar, na letra do decreto de 1892, Instituto Bacteriológico de Lisboa. O que foi a vida e obra de apostolado de Câmara Pestana, morto aos 36 anos no cumprimento da sua missão quando estudava a epidemia de peste bubónica que em 1899 assolou a cidade do Porto, está contado e recontado.(...)
O rol bibliográfico deste multímodo pesquisador foi elaborado e comentado pelo seu mais ilustre biógrafo, o Professor Ferreira de Mira. (...) A primeira publicação intitulada .Contribuição para o estudo das alterações cadavéricas das células radiculares da medula espinhal. saiu nos .Arquivos de Medicina., fundados por Câmara Pestana, quando França era ainda estudante e já interno dos hospitais de Lisboa. É um trabalho de Histologia do sistema nervoso elaborado no que ele designou por .Laboratório de Histologia do Real Instituto Bacteriológico de Lisboa.
E não é para admirar que, duma oficina de bacteriologia, surgisse uma obra de histologia já que Câmara Pestana, o mestre, era a um tempo versado em microbiologia, em anatomia patológica e em clima, dentro do conceito de que a ciência médica forma um todo onde importa estudar tanto as causas da doença, como os seus efeitos e sua possível cura. Daí que a dissertação inaugural de Carlos França que culminou a sua vida estudantil em 1898, fôsse também um trabalho de histologia sôbre o método de Nissl no estudo da célula nervosa e bem assim a publicação do ano seguinte sobre o papel dos leucócitos na destruição da célula nervosa, já de parceria com o notável histologista Mark Athias que então havia feito a sua aprendizagem em Paris com Mathias Duval e viera juntar-se à turma de Câmara Pestana. Nesse ano memorável de 1899 as atenções de todos estavam centradas na peste do Porto, onde acudiu Pestana com os seus colaboradores Gomes de Rezende e Carlos França.
O trabalho árduo a que todos se votaram dia e noite no miserando Hospital das Guelas de Pau, onde se acumulavam os pestosos, teve por epílogo a contaminação de Pestana e de França com o terrível morbo que levou à morte o primeiro e poupou por um triz o segundo. Desse trabalho clínico, epidemiológico e laboratorial deram conta Carlos França e Rezende no seu relatório de 1900. O material então colhido serviu-lhe de substrato para o estudo das alterações dos centros nervosos na peste e mais tarde para a descriminação das lesões cutâneas na mesma doença publicadas em revistas francesas e alemãs.
A aprendizagem da bacteriologia ía-lhe custando a vida mas não lhe afrouxou o ânimo, de tal modo que a breve trecho se lançou nas investigações sobre a raiva. Por essa época a raiva, doença invariavelmente mortal, grassava com intensidade em todo o País. O cão danado surgia em cada esquina ao indígena incauto e, para tratar os mordidos, tinha Câmara Pestana apetrechado o seu Instituto, que por morte de Pestana era agora dirigido por Aníbal Bettencourt. Vale a pena lembrar que a fundação do Instituto Bacteriológico muito deveu à Rainha D. Amélia, cujo retrato pintado por Salgado ainda orna muito justamente as paredes da biblioteca desta instituição. À beira da morte, Pestana escrevera à Rainha no sentido de interceder para que a direcção do Instituto fôsse entregue ao seu colaborador mais antigo, o Bettencourt e que Carlos França entrasse no quadro como médico auxiliar.
O testamento do sábio bacteriologista foi escrupulosamente cumprido. Nomeado chefe de Serviço da raiva, Carlos França dedicou-se logo ao estudo das alterações de sistema nervoso nos indivíduos mortos pela doença e à pesquisa de métodos laboratoriais que facilitassem o diagnóstico da doença em vida. Por outro lado, conhecedor de que a doença provinha dos animais e constituía a zoonose mais terrível, empreendeu um conjunto de estudos memoráveis que intitulou .Pesquisas sobre a raiva na série animal., investigando os murídeos, a raposa, o ouriço, o texugo, a doninha, o porco espinho e o lobo, estabelecendo dados que mais tarde viriam a ser confirmados por pesquisadores doutros países.
Só muito depois dos seus estudos, o ratinho ou murganho se tornaria, como ele previra, o animal sensível de escolha para a investigação do vírus rábico. Os temas de estudo surgiam-lhe agora debaixo dos pés. Na nosografia nacional reaparecia em 1900 a meningite cerebroespinhal epidémica que por um quarto de século andara arredada do País. A onda epidémica, que partira do nordeste transmontano e se espalhara a todas as províncias, atingiu o seu auge no começo de 1902. Os numerosos casos geralmente ocorridos em crianças da área de Lisboa eram acolhidos no serviço especial de isolamento instalado no Hospital de Arroios cuja direcção foi cometida a Carlos França. Então por sua iniciativa neste hospital ou em colaboração com Aníbal Bettencourt no Instituto Bacteriológico, empreendeu um longo estudo clínico, epidémiológico, anatomo-patológico e bacteriológico, de que prestou contas num relatório ao Conselheiro-Enfermeiro-Mor dos Hospitais e que publicou, em pormenor, numa memória subscrita por Bettencourt e França a qual constitui o primeiro artigo do primeiro número da publicação ainda hoje denominada .Arquivos do Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, que foi sucessivamente dirigida por Anibal Bettencourt, Nicolau Bettencourt e por mim próprio. Nesta e noutras publicações sobre a meningite epidémica ressaltam verdadeiras inovações, como o uso de substâcias antissépticas injectadas no canal raquidiano para tratamento da doença, método que logo foi adoptado pela medicina de além fronteiras.
Ano após ano foi-se desentranhando em pesquisas diversas até que, em 1910, a epidemia de cólera da ilha da Madeira veio mudar o curso à sua actividade e influir radicalmente na sua vida científica. Já então se havia proclamado a República no País e o ministro do Interior, ao tempo o Dr. António José de Almeida, alarmado com a difusão da epidemia de causa ainda não confirmada, sugeriu ao Prof. Ricardo Jorge, Director Geral da Saúde, que se enviasse Carlos França a fim de apurar o diagnóstico e assumir a direcção da luta antiepidémica. Caldeado pela experiência dos andaços pestosos do Porto e meningíticos de Lisboa, era França o nome indicado para semelhante tarefa. De principio recusou alegando o seu estado de saúde. Na verdade, desde há tempos que o vinha aflingindo o mal que o havia de levar à morte, mas o sentido do dever foi mais forte e, a 30 de Novembro desse ano, partiu para a Madeira no vapor S. Miguel, já investido no cargo de Director dos Serviços Sanitários Insulares. Imediatamente após a sua chegada procedeu aos estudos laboratoriais que firmariam o diagnóstico de cólera pelo isolamento e culturas do vibrião seu agente. Ao mesmo tempo iniciou um conjunto de medidas de combate à doença, estabelecendo uma organização sanitária modelar que a breve trecho conduzia à extinção da epidemia. Não foi porém sem obstáculos que o árduo trabalho se processou. Deparou-se-lhe uma população na sua maioria ignorante e fanática, vivendo na miséria e na ausência dos mais rudimentares preceitos de higiene motivada pelo alcoolismo e a fome, negando-se a aceitar que a doença reinante era a cólera. O encerramento do porto do Funchal mais agravou a animadversão do povo. Urgia trabalhar depressa e com decisão. Logo que aquela pobre gente viu a epidemia a declinar, mercê das medidas adoptadas, afrouxou a sua desconfiança e como escreveu com modéstia o próprio Carlos França, a Madeira, com inegualável bizarria, recompensava generosamente aquele sobre cujos ombros pesava indevidamente o honroso encargo de Chefe dos Serviços Sanitários do Distrito.
Entretanto iniciara França, no Instituto Bacteriológico e na Escola Politécnica onde desempenhou o cargo de naturalista do Museu Bocage, a sua obra de parasitologista que havia de imortalizá-lo. Sendo a Parasitologia, já nessa época, uma ciência reconhecida no mundo culto, mal andaria a Faculdade de Medicina de Lisboa se lhe não desse foros de disciplina independente e não procurasse chamar ao seu âmbito Carlos França como professor indiscutível. E assim Carlos França foi por unanimidade e com dispensa de provas, nomeado professor livre da Faculdade. Quando das comemorações do Centenário da Régia Escola de Cirúrgia de Lisboa em 1925, o novo docente proferiu no anfiteatro de Fisiologia do Campo de Santana quatro memoráveis lições de Parasitologia. No início do seu discurso comemorativo disse Cândido de Oliveira: "E porque os escritos e comentos sobre Carlos França escasseiam para vergonha de todos nós, é mister que alguém desencante dos alfarrábios esta maravilhosa história de proveito e exemplo e a traga ao convívio do povo generoso da sua terra. (Colares, 1977)".
É porém ao convívio de todos nós que, neste início de século, deve ser trazida a obra do epidemiologista, parasitologista e higienista que em 1925, referindo-se à omnipotência que a higiene hoje possui, diria .que os seus progressos foram tais que ao Século XX caberia rigorosamente a designação do século da higiene, tais as maravilhas que nele se têm realizado nesse campo, que é, afinal, o de uma das mais belas conquistas para a Humanidade..
Artigo de Fanny Andrée Font Xavier da Cunha* na revista Medicina na Beira Interior, disponível numa sebenta da faculdade de medicina de Coimbra.
* Técnica Superior, Museu Nacional da Ciência e da Técnica.
Notas
1 Professor da Faculdade de Medicina de Lisboa (1906-? ), distinguiu-se no campo da Bacteriologia, da Serologia, da Parasitologia, da Hematologia, da Quimica Biológica, do Metabolismo Basal, etc. Foi o primeiro que, em Portugal, iniciou estudos sobre Bruceloses.